Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







quarta-feira, 11 de agosto de 2010

UMA NOITE NA VIDA DE FERDINANDO JOHN !

Ainda deve ser cedo. Nenhum ruído na rua, nem carro, nem gato, nem vento nem chuva. Tudo aparentemente no escuro. Janelas sem mostrar contorno algum, nada de reflexos no corredor. Talvez fosse diferente se eu já tivesse trocado a lâmpada que ilumina a lateral da casa. A poucos dias eu até troquei, mas já no segundo dia não acendeu e ainda não criei coragem para subir novamente naquela escada completamente bamba, meio banguela também, pois faltam 2 degraus, por sorte não são contíguos pois aí eu não conseguiria subir mesmo.
De bermuda eu ainda consigo, mas de calça tenho que levantar muito a perna para saltar 2 degraus e isso força muito o fundilho da calça. Eu até tive que mandar cerzir uma calça pois o fundilho estava uma desgraça. Mas não creio que foi por subir em escadas desdentadas. O fundilho gastou naturalmente, pois a natureza de um fundilho impõe-lhe o gasto. Além disso, sempre que estou lá em cima da escada fico pensando se o degrau não vai quebrar como os que já se foram.
Silêncio. E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, Ferdinando ? Drummond, a esta hora, é no mínimo estranho. Ferdinando sou eu, ou apenas Ferdinando John, e nesta hora também sou um pouco estranho. Explico meu nome.
Meu pai queria que eu fosse John Ferdinand, sem a vogal final, e também com os nomes invertidos ao que restou escolhido. Embora de leituras limitadas, meu pai tinha grande interesse por nomes. Nomes de tudo. De gente, animais, plantas e não sei mais o quê. Até pedras. Lembro que tínhamos uma pedra grande num canto do pátio. Já estava lá quando chegamos e fixemos uma única tentativa de removê-la, mas pareceu ter raízes profundas, já petrificadas. Pedra sem lapidação ou corte algum, exposta à chuva e sol, sem aparente utilidade, exceto por ser usada como posto de observação de um bem-te-vi que em dias ensolarados de inverno pousava ali, na expectativa – normalmente atendida – de apanhar alguma minhoca. Pois meu pai batizara a pedra de Petrônia. Basicamente em homenagem à sua natureza de pedra, mas também, vim a saber depois, à Petronius, poeta romano, tido como pessoa muito observadora. Petronius, que seria Gaio Petronius para alguns, ou Titus Petronius para outros, viveu no início da era cristã, tendo em Satiricon um de seus trabalhos mais conhecidos. Também foi personagem no filme Quo Vadis, onde aparecia como conselheiro de Nero. Esse Petronius, político, poeta, vagabundo e libertino, da corte de Nero, não é o mesmo da Basílica de São Petrônio, em Bologna, Itália.
Nesse contexto, o nome Petrônia, significaria pedra observadora. Aqui entre nós, observador mesmo era o bem-te-vi que ficava atento sobre aquela pedra. Observador atento de minhocas, por sinal.
Deixando a Petrônia de lado, e retornando ao meu nome, meu pai escolhera John por significar algo como abençoado por Deus. Pelo menos é o que tinha lido sobre isso. Creio também que era fã de John Wayne, embora nunca tivesse admitido essa influência, e não penso que esse matador contumaz de índios tivesse alguma benção divina. A menos que os índios não tivessem alma, como foi defendido por alguns em algum tempo. Mas, em resumo, foi assim que o John entrou no meu nome. Hoje eu gosto muito, principalmente quando me chamam de Johnny. Minha mãe aceitou bem a escolha de meu pai, mas também queria deixar em meu nome, sua escolha. Eu teria então nome composto. No início, escolheu Fernando, creio que em homenagem aos reis Fernando e Isabel, que transformaram a Espanha na saída da idade média. Mas também porque Fernando tinha significado de forte, ousado e protetor. Acontece que por palpites externos, John não combinaria com Fernando. Ora, John Fernando ! Então deveria ser Ferdinand ! Acabou de uma forma negociada. Nem um nem outro, mas Ferdinando John, que, mesmo com a vogal, ao final agradou a todos. Para mim não fez diferença pois, assim como quase todas as pessoas, acho meu nome muito bonito. Apenas para esclarecer, as pessoas acham seus nomes bonitos, não o meu. Eu é que acho bonito, o meu.
Quê horas devem ser? Deixa eu ver ... te acalma ô meu! Esse celular é igual na frente e verso. Para quem tateia no escuro é complicado, pois ainda tenho que encontrar e colocar meus óculos. Sem eles, todas as horas são pardas. Hum ... 4 e 28. É cedo mesmo. Ainda não vale a pena acordar, mas também não tem muito mais prá dormir. Já ajeito isso: uma passadinha no banheiro, alguns goles d'água na cozinha e voltamos prá cama. Noventa por cento das acordadas noturnas se resolvem assim. A não ser se há algum barulho estranho. Como o barulhinho na cozinha que Veríssimo (o Érico) mencionava em "Clarissa". Ou "Um lugar ao sol", não me lembro bem. Segundo seu personagem - e eu concordo plenamente - quando nos acordamos com algum barulho na cozinha temos duas alternativas: ou levantamos e vamos até lá, acendemos a luz e confirmamos que não é nada, ou passaremos o resto da noite acordados, imaginando os perigos que aquele barulhinho está anunciando. Não só na cozinha, mas na vida também. Ou vamos lá e espanamos os fantasmas, ou eles nos tomarão de assalto e não nos deixarão mais em paz. Temos a escolha. No primeiro caso estaremos sozinhos, no segundo acompanhados. Pelos fantasmas. Prá quem prefere alguma companhia a nenhuma, bom proveito! Eu gostava muito de ler Érico Veríssimo. Comecei com "O Continente" e depois "O retrato", as duas primeiras partes dO Tempo e o Vento. Eu tinha uns 12-13 anos e fiquei uma semana de cama com caxumba. Sorte que eu cuidei, pois anos mais tarde vim a saber que a caxumba mal cuidada recolhe, transformando-se em caxumba recolhida. Eu não sei bem o mecanismo, mas deve ser terrível. E ainda torna o cara estéril. Eu lembro de um colega de trabalho que teve caxumba recolhida e dava pena ver o cara caminhando na fábrica. Quase se arrastava, de pernas abertas, entre uis e ais. Parecia uma carroça velha trancando o trânsito de quem andava no corredor. Por sorte já era de mais idade e já tivera seus filhos. Mas creio que ainda funcionava. Depois da caxumba não sei não. Mas o caso é que li também, outras obras do Érico Veríssimo e um dia me interessei pelo Josué Guimarães. Li vários, mas recomendo Camilo Mortágua. Nunca vi cara tão sofredor, esse Camilo Mortágua. E olha que era boa pessoa. Ia sofrer no cine Castelo, ali na Azenha, onde o filme Cleópatra se confundia com sua vida. Teve a infelicidade de casar com bruxa da Eleonora e se estrepou. Acabou na pensão da Dona Consuelo e em definitivo no cine Castelo. Pobre Camilo, que tem um pouco de todos nós. E de nós, que temos um pouco de Camilo.
Bem agora com tudo resolvido, posso dormir um pouco mais. Pelo menos ficar na cama pensando. Nessa levantada noturna, dei um chute com o dedo mindinho no pé da cama. É sempre assim. No escuro a gente pensa que vai prá um lado e está indo prá outro. Às vezes damos uma guampada na quina da porta, porém quem mais sofre é esse dedo mínimo que a gente chama carinhosamente de mindinho ou minguinho. Mas o nome técnico é dedo auricular. Tão pequeno e relativamente desprotegido. Estaria melhor no meio dos demais, de preferência em um pé com 2 dedões, um em cada ponta. Já pensou?
Lembro que quando éramos crianças, meu irmão e eu, talvez quase bebês, minha avó fazia uma brincadeira com os dedos que terminava em cócegas na gente, justamente com o dedo mindinho. Era um versinho em que cada dedo era um ator ou personagem, e contado em espanhol, ficava assim:
Este puso un huevo...(encostando o polegar na gente e dizendo que ele tinha colocado um ovo... a cozinhar)
Este lo coció...(agora o dedo indicador, que teria cozinhado o ovo, encostava na gente também)
Este lo peló...(o dedo médio pelou, descascou o ovo, e já encostava na gente preparando o gran finale)
Este le echó sal...(o anular colocou sal no ovo, e juntava-se aos outros em posição de fazer cócegas)
Y este picaro gordo...selo comió, se lo comió!!!!!!! (e então todos os dedos caíam a fazer cócegas na gente). Aquilo era muito gozado. Pelo menos parecia. A gente ficava sempre querendo mais, na espera do "picaro gordo". Eu não sabia o que significava exatamente o tal do "picaro gordo", mas parece que é algo como patife gorducho, ou malandro gorducho.
O ar está meio frio e a cama também. Uma ligadinha do lençol térmico é uma boa pedida.
Esse negócio de lençol térmico engana quem não conhece. Ou quem não conhece se engana. Eu mesmo nunca dei muita atenção ao tal do lençol térmico. Primeiro porque imaginava que fosse um lençol, e não sei porque cargas d´'agua pensava que era o lençol de cima. Não me imaginava dormir coberto por um lençol recheado de fiozinhos enroscadinhos ligados na tomada. Já pensou se fica quente demais e a gente sua? Não sei o que poderia acontecer, mas eu é que não ficaria embaixo disso. Correndo o risco de levar choques na bunda.
Passados alguns anos, descobri que o lençol térmico não é propriamente um lençol. Seria mais um forro inferior para ser usado embaixo do lençol de baixo. Embaixo do lençol de baixo. Já pensou ?
Então é assim: eu uso o impropriamente denominado lençol térmico sobre o colchão. Sobre o lençol térmico ainda vai um forro de colchão e aí sim o lençol de baixo. Com isso se afasta um pouco aqueles fiozinhos que estão soltando calor - transformando energia elétrica em energia térmica - e fica muito confortável.
Acho que já dá prá desligar. Já deu uma aquecidinha. O que mais gosto é encostar bem as pernas no quentinho. Primeiro deitado de costas pressiono a panturrilha - prefiro barriga da perna - sobre o colção quentinho, e depois encosto as pernas no lençol, pressionando-as levemente, primeiro de um lado e depois o outro, como se assa um galeto no calor das brasas. É muito bom sentir o calor entrar pelos músculos e subir ao ponto de provocar um arrepio.
Oh! Agora teve um barulho de carro. Parece que parou perto de casa e aí arrancou rapidamente. Não tenho certeza se parou ou já estava parado, e simplesmente foi embora. Estava distraído, aproveitando o quentinho da minha cama. Mas, pelo barulho, tenho certeza que o carro partiu apressado. Poderia ser alguma entrega de jornal. Nesta hora eu sei que o pessoal entrega os jornais para os assinantes. Mas se era entrega, já entregaram. Tudo quieto de novo.
Quanto tempo já passou? Eu já sei o que aconteceu. Talvez o café que tomei ontem a noite tenha me despertado. É que estava friozinho ontem à noite e me apeteceu tomar um café. Essa palavra "apeteceu" é muito estranha. Acho até que eu nunca tinha escrito "apeteceu". Nem me lembro de ter lido algum dia essa palavra pois é muito gozadinha. Mas talvez não tenha sido o café, pois, nesse caso eu teria tido dificuldade em dormir. Mas não tive. Li umas 5 páginas, apaguei a luz e dormi. Só acordei a pouco, as 4 e 28.
Agora ouço os primeiros pássaros cantando. PaSSÁros ! E assím que minha filha dizia. PaSSÁro, com a penúltima sílaba tônica como se fosse paroxítona. Eu achava muito gozado. Mas ela corrigiu logo. Tem uma idade infame que não se pode esperar muito das filhas. É naquela época que são capazes de passar horas a fio cantando "Pepito foi a lua ... para ver o que era a lua .." E assim ia até terminar com "tumba-araca-tumba-lua!! Nessas horas a gente quer se enfiar num buraco." E quando parecia que ia terminar vinha "Pepito foi ao Avaí ... para ver o que era o Avaí ...". E tudo de novo até "tumba-araca-tumba Avaí!" Haja pai numa hora dessas. Mas quem se divertia com o "picaro gordo" consegue entender o Pepito foi à Lua.
Agora sim, mais pássaros cantam. Ainda é noite mas já deve estar amanhecendo. Estamos no início de agosto. Para mim e para os pássaros estamos entrando na primavera. Para o gado em geral a primavera entra no final de setembro. Creio que seria em 23 ou 24 de setembro. Mas essa é a primavera austral, para quem está no hemisfério sul. Para os europeus e americanos deve iniciar em março. E chama-se primavera boreal. Assim, se alguém perguntar quando entra a primavera, pode-se responder com outra pergunta. Qual primavera ? Boreal ou austral. Pode ser que a pessoa bote o rabo no meio das pernas e desapareça na sua sombra. Ou simplesmente exclame "ahn?", com cara de idiota enquanto pensa numa estratégia de sumir do mapa. Mas isso de primavera boreal ou austral é quase cultura inútil. Nesse aspecto, saber cantar "Pepito foi à Lua", pode ser mais útil.
Mas a questão do início da primavera é a seguinte - e já vou avisar que o raciocínio serve para as quatro estações -: em torno de 24 de junho temos a mais longa noite do ano (no hemisfério sul), e o dia mais curto o anterior ou posterior a essa noite. Esse seria o ponto de menor ensolação, porque a inclinação ..., etc, etc. Nesse momento estamos no pico do inverno. E não no início do inverno. Esse fenômeno caracteriza o tal de solstício de inverno, e essa data natural já era comemorada pelos povos antigos, anteriores aos romanos, e principalmente pelos bárbaros e pagãos, que davam sentidos religiosos tanto ao solstício de inverno como o solstício de verão. Então, se o pico do inverno é em 24 de junho, essa seria a data mediana do inverno, e este iniciaria de fato no início de maio e iria até início de agosto, ou seja 45 dias antes de 24 de junho até 45 dias após essa data. Logo viria a primavera (início de agosto a início de outubro e assim por diante).
Os pássaros - também os paSSÁros, caso existam esses animais paroxítonas - e toda a fauna e flora terrestre, sabem quando inicia a primavera. Porisso, hoje, 11 de agosto, estão já cantando ao amanhecer, enquando o gado em geral pensa que ainda é inverno.
Deixa ver que horas são, pois agora está me dando sono. Puxa, são 6 e 28. Já passaram duas horas e acho que não dormi nem um instante. Mais dois minutos e o despertador tocaria. Pronto, desligo ele e tiramos uma preguicinha.
Será que dormi? Deixa ver. Uau! Dez prás sete. Mais dez minutos e começa a bateção das obras do entorno. São dois edifícios e como a barulhama só pode começar a partir das sete, os carinhas ficam com os martelos, marretas, porretes e não sei mais o que, só aguardando o sinal das sete horas. Talvez pensem que são obrigados a dar porretadas a torto e direito, as sete horas.
Bem, tá na hora. Vamos levantar, Ferdinando! Deixa que o John fique aí sonhando por nós.

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