Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







segunda-feira, 16 de agosto de 2010

TEMPOS DE CACHORRO

Introdução

Dizem que a idade dos cachorros deve ser multiplicada por sete para calcular o equivalente à idade humana. Não tenho a menor idéia do quê usaram para chegar a essa equivalência tão aceita e tão definitiva.  Eu, sinceramente, preferiria o contrário. Que minha idade fosse dividida por 7 para calcular minha idade de cachorro.
E isso que não sou cachorro. Nem humano cachorro, eu acho.
Mas outros usam 5 anos para os primeiros 2 anos e 7 para os seguintes.
Eu encontrei até uma tabela de conversão para encontrar a "verdadeira idade biológica dos cães". Já pensou nisso ? A verdadeira idade biológica ! Quê cretinice !
Mas, indo direto ao ponto, através dessa aritmética canina estima-se que durante a vida humana pode-se ter de 7 a 8 cachorros de estimação, um atrás do outro, com um saudável intervalo de 2 a 4 anos, entre cada canino. O importante é que não sejam contemporâneos, pois aí a contagem estaria prejudicada. Não há restrição alguma a serem todos da mesma raça, mas pode ser menos chato se forem de raças diferentes. Tanto o Fila Brasileiro ou o Dog Alemão contam como apenas 1 cachorro. Da mesma maneira o Pinscher, Schnauzer Miniatura, etc, contam como cachorro inteiro. Nesse aspecto, grandes e pequenos, de madame ou viralatas, todos eles equivalem a um Dog Alemão. Essa simplificação na contagem, apesar da brutal diferença de tamanho ficaria compensada nos intervalos entre um cachorro e outro.
Se você não acompanhou este raciocínio, não se incomode. Você não é o único que ficava conversando nas aulas de matemática e filosofia. Mas acredite, é isso mesmo.
Assim, pode-se dizer, ao se referir à idade de alguém: fulano está no 5º cachorro. E tem um filho no 2º cachorro. A cachorra da mulher dele tem 3 cachorrinhos, mas não representa. E por aí afora.
No meu caso, minha vida de cachorros começou cedo.

Parte I - Um tal de Gauchinho

Foi assim: meu primeiro cachorro não era um cachorro. Foi um gato. Não era um cachorro chamado Gato. Nem um cachorro que as cachorras achavam um gato. Era um gato mesmo. Que fazia miau.
Isso foi a muito tempo atrás, mas bem depois do tempo em que amarravam cachorro com linguiça. Eu demorei muito a entender a origem e o significado dessa expressão: amarrar cachorro com linguiça.
Vou deixar o gato esperando um pouco para entrar em cena e conto rápidamente a lenda muito antiga, sobre uma terra onde os cachorros podiam ser amarrados com linguiça.
Naquele reino, onde tudo e todos eram bons, se usava amarrar os cães com linguiça, até que um deles cedeu aos seus impulsos mais primitivos e devorou aquela deliciosa corrente que o prendia. Visando encontrar aquele insubordinado, o rei dos cães, furioso, ordenou que todos os cachorros cheirassem uns aos outros num determinado lugar, até que fosse descoberto algum vestígio ou sinal das linguiças que incriminasse aquele safado comedor daquela iguaria. Conta a lenda que a partir daí, os cachorros não pararam mais de se cheirar. Quanto ao comedor de linguiça, não sabemos se foi encontrado ou ainda está solto por aí.
Esclarecida a expressão "amarrar cachorro com linguiça", usada hoje com o significado de falta de cuidado ou zelo, ou até com o significado de assumir risco indesejado, volto ao meu primeiro cachorro, que, como já referi antes, era um gato. Miau.
Acontece que naquele tempo eu teria 2-3 anos e encontrei na margem do rio onde nos banhávamos um pequeno gatinho, talvez perdido, talvez com fome e pedi para ficar com ele. Não sei para quem pedi, mas o fato é que fiquei com ele e o levei para "as casas", como são chamadas a sede da fazenda e construções agregadas, na campanha de Bagé. Eu não lembro com nitidez desse primeiro encontro, mas talvez com os anos passarei a lembrar dos primeiros encontros e esquecerei os encontros recentes.
O fato é que fiquei com o gato. O bichano também ficou aquerenciado e nunca fugiu. Sem maiores formalidades, batizei-o de Gauchinho. E, em todos os verões, quando ia de férias àquele lugar de tantas lembranças, eu levava balas de goma para o Gauchinho. Eu e ele dividíamos o pacotinho. O clássico pacotinho cilindrico em que umas 10-12 balas de goma vinham enroladas com papel celofane, embora se celofane era, não era papel. Pois, papel é papel, celofane é celofane. Pior do que "papel celofane" só "papel alumínio". Quanto às balas de goma, iguais até hoje, vinham em várias cores, mas cada bala de uma só cor. Uma bala, uma cor. Como uma pessoa, um voto.
Eu preferia de longe as balas cor de laranja, depois as amarelas e menos as vermelhas e roxas. As balas verdes eu deixava todas para o Gauchinho, que nunca demonstrou preferências por alguma cor em especial. Gostava de todas. Mas mesmo podendo fazer uma divisão justa, eu sempre escolhia o pacotinho que continha mais balas laranjas. Afinal, o preço era o mesmo, e tenho a clara lembrança que cada pacotinho custava menos do que 1 cruzeiro, que era a moeda da época. Sei disso porque uma vez eu mesmo paguei com uma nota de 1 cruzeiro e recebi troco. Esse tal de 1 cruzeiro era azulzinho com a estampa do Almirante Tamandaré. Na época eu tinha estudado esse almirante, mas nem me lembro mais. Anos mais tarde, vivi perto da Praça Tamandaré, com cujas lembranças escreveria uma enciclopédia. Com direito ao livro do ano, que acrescentaria as lembranças que não foram lembradas no lançamento da enciclopédia. Mas aí são outros quinhentos.
E assim, entre as balas de goma, o gato, e o Almirante Tamandaré, já passou uma vida de cachorro. Explicando melhor, dos sete períodos de vida de cachorro que, enfileirados e somados, equivalem à vida humana, meu primeiro cachorro (no caso um gato) já tinha vivido. E eu também.

Parte II - O caninossauro Rex

Depois disso, num outro período, tivemos o Rex. Não era tirano, muito menos tiranossauro. Naquela época, não se falava nesses animais nem ninguém que eu conhecesse teria motivos para se interessar por eles. Atualmente tem até album de figurinhas desses bichos pré-históricos. Eu, particularmente, acho uma chatice esses animais. Um verdadeiro porre. Para quem gosta e quer saber um pouco mais, deixo aqui um link da wikipedia com a relação e classificação desses bichos, pois tem muito mais variedade do que os terminados em SSAURO, que são mais conhecidos..
Mas o meu Rex, que agora não era mais um gato, mas um cachorro de verdade, era, na época, um policial. Nos dias atuais se chamaria pastor alemão. Tenho lembranças do Rex no pátio da casa, que era grande. Não a casa, que era pequena, mas o pátio, que era grande. Não sei quanto durou, pois não lembro como desapareceu, mas creio que foi dado para alguém. Ou teria sido envenenado ? Tem qualquer registro sobre isso no fundo do fundo de meu subconsciente.
Daquela época, lembro do gosto amargo da "emulsão Scott", feita com óleo de fígado de bacalhau, um líquido branco, espesso, amargo, que tínhamos que tomar uma colherada antes do almoço. Eu tinha não mais do que 8 anos e a coisa era meio assim: primeiro aquela conversa que a tal emulsão ia me deixar grande e forte como aquele carinha que estava no rótulo carregando o peixe, e ainda por cima, nosso médico da família, certamente mancomunado com a família, garantia que aquilo era muito bom. Duvido que o Doutor tenha provado um dia aquela coisa branca. E o que é pior: tinha que ser tomado em colher grande, de sopa. Eu nunca esqueci da emulsão Scott pelo seu gosto amargo, que depois vim a re-encontrá-lo nas despedidas. Mesmo as pequenas despedidas podem ser tão ou mais amargas que aquela emulsão. Mas, diferentemente da emulsão, cujo amargor vai embora em instantes, as despedidas tem um amargor mais permanente, além de apertar o coração e embaçar a visão. Assim, tenho consciência que hoje eu preferiria tomar aquela emulsão do que passar por despedidas.
 De qualquer maneira, nos dias atuais, o pai que ousasse meter guela abaixo dos filhos aquele óleo de fígado de bacalhau branco espesso e amargo estaria sujeito à um processo por dano moral (na área cível), e maus tratos à criança (no crime). Além de arriscar ser destituído do pátrio poder.

Nessa mesma época fui seduzido por uma campanha que distribuiu biotônico Fontoura na minha escola. Eu devia estar na 3ª ou 4ª série primária (hoje fundamental). Lembro que era um dia muito ensolarado, provavelmente primavera e, na hora da saída, ainda no pátio da escola a gurizada toda, de camisa de manga curta branca (volta ao mundo ?) e gravata marinho, fazia uma festa só porque havia um monte de gente vestida de biotônico Fontoura distribuindo garrafinhas de uns 50 ml para todos. Mas era apenas uma garrafinha para cada um. Ainda bem ! O tal biotônico Fontoura, que anunciava ter mais ferro e fósforo que os demais tônicos, era um líquido escuro e horrível. Ainda mais tomado no gargalo, meio morno por estar exposto ao sol. Vocês imaginam uma mistura de xarope Fenergan com o digestivo Underberg ? Pois então: aquele biotônico era muito pior. Perto dele, a emulsão de Scott até que era tragável.
Mais tarde apareceu o Almanaque do Jeca Tatu, que explicava as propriedades quase milagrosas daquele Biotônico Fontoura. Não sei quem fez mais sucesso: o Almanaque do Jeca Tatu, o próprio Jeca Tatu que depois do almanaque passou a ter vida própria, o ator que representava Jeca Tatu no cinama (Mazzaropi), o criador do almanaque, um tal de Monteiro Lobato, Cândido Fontoura, criador da criatura, ou a própria criatura denominada Biotônico Fontoura.
Até o Pelé, quando ainda não era o Pelé - pois só mais tarde passaria a sê-lo -, tomava o tal biotônico Fontoura.
Eram tempos de inocência e boas intenções.

Depois disso nunca mais tomei biotônico Fontoura, nem emulsão Scott. Também não soube notícias do Rex.
Esse foi o 2º cachorro que passou pela minha vida.

Parte III - Lady Di

Mais adiante, teve um cachorro que não era cachorro. Era uma cadela vira-lata que minha avó dava comida até que a tal cadela entendeu que tinha encontrado um lar-doce lar. Au ! Au! Se chamava Diana - nome de princesa, embora ainda ninguém soubesse -, entrou como cachorro magro, oooops!, cadela magra, e poucos anos depois tarde mais parecia um porco gordo. Mas não grunhia, só comia!
Nesse tempo, eu tinha uns vinte anos, idade equivalente à 3 cachorros. Faltavam apenas os saudáveis intervalos de 2-3 anos entre a cachorrada. A regra dos 7 anos se mostrava válida.
Depois de respirar um pouco, chegou a época Billy. Veio em 2 etapas. Num primeiro momento, teve um Billy que não deu no couro, pois era um beagle terrível e em poucos meses enloqueceu a todos, de modo que foi passado adiante antes de criar raízes sentimentais.

Parte IV - Billy, the kid

Mais um momento de merecido e salutar descanso, e aí veio o Billy definitivo. Agora sim, na linha da vida da cachorrada esse teria sido o 4º cachorro.
Embora da mesma natureza das salsichas, pois não deixava de ser salsicha, o Billy nunca foi de amarrar com salsicha. Chegou pequenininho, numa caixa de sapato nº 33, e fez a alegria de muitos. Mas não de todos. Eu fiz questão de minha contrariedade, mas, anos depois, o salsicha Billy era meu especial companheiro junto à churrasqueira da casa da praia.
Durante sua vida de muitos anos, o que mais se ouviu foi "olha o Billy!" e "cuidado com o Billy!". Era meio mordedor, e também gostava de bundas. De morder as bundas.
Foi um sucesso o tal de Billy, pois ainda em vida teve seu nome copiado pela casa vizinha, com muita criatividade por sinal.
Depois do Billy eu pensava que havia uma combinação tácita de que o tempo da linha da vida não seria mais medido por cachorros.

Parte V - Scooby-doo-by-doo!


Mas eis que poucos meses depois do Billy (pior do que isso, poucas semanas) me fizeram uma cachorrada do cão e apareceu o tal de Scoobie, um labrador cor de chocolate, no início pequeno, depois um terneiro, que após de 8 anos, ainda não aprendeu a se servir de comida e água. Muito menos trazer o jornal. Em compensação, a casa é uma baba só e meu carro está tão peludo quando ele. Houve um momento após sua chegada que a presença desse animal gerou em mim um tal conflito interno, de ordem psíquica, que me fez somatizar uma doença, inclusive com hospitalização. Difícil de diagnosticar de início, no terceiro dia de hospitalização, quase me enfiando um não sei o que para extrair um pedaço de meu pulmão para autópsia, eis que finalmente os médicos diagnosticaram pneumonia. Uma pneumonia atípica, segundo eles. Atípica e canina, pensava eu, pois tanto eu como todo mundo sabíamos quem era o responsável pela pneumonia atípica. Só aquele Scoobie não sabia. Ou se fazia de desentendido. Estive a ponto de dizer ou ele ou eu, mas na hora agá me faltou coragem, pois no momento eu não teria para onde me mudar e o prestígio do Scoobie estava em alta. Resolvi, num ato de racionalidade e covardia, ficar amigo dele.
Esse tem sido o 5º cachorro e de certa maneira o último, pois ninguém merece levar uma vida contando o tempo através de cachorros, sejam eles cachorros mesmos, ou cachorras, ou mesmo gatos.

Piccolo Finale

Daqui a algum tempo eu direi que minha idade é 5 cachorros + alguns anos. E quando isso acontecer, provavelmente sentirei saudades dos tempos de cachorro.

Um comentário:

  1. Mas descubro por aqui que meu antigo chefe é poeta !
    Adorei o Blog !!!
    Tenho um Flickr Cassia Juchem ....segui teu coselho e segui nas vendas já exportei meus trabalhos para Lisboa !

    Abraço pra tí , Nadia !

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