Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







segunda-feira, 3 de março de 2014

FIM DE TARDE COM TCHEKHOV E PIZZA



Eram em torno das sete da tarde, mais um bocadinho e seria noite. No hemisfério sul, em pleno horário de verão, àquela hora, o sol, embora já indicasse que mais um dia terminaria, ainda despejava seus raios no entorno da casa de Ferdinando.
Onde ele estava já havia sombra dos prédios em frente, e, tirando proveito disso, pois mesmo em um dia escaldante pode-se tirar proveito do sol – ou de sua ausência -, ele acomodou-se na pequena área de um minúsculo patamar, em frente à porta principal de sua casa, em nível superior à rua e seus movimentos. Organizou seu acolhedor recanto e acomodou-se para apreciar aquele entardecer.
Sentado numa cômoda cadeira de jardim, aproximou uma pequena mesa de centro, de forma quadrada, que usava para estender as pernas, e, à sua direita, apoiou no chão de piso cerâmico seu aperitivo preferido para o verão. Martini branco com uma cereja, três colherinhas de maraschino, e muito gelo. Tudo isso em uma taça alta bojuda, própria para vinhos. Trouxe também um livro de contos de Tchekhov, que já o acompanhava pela casa a três ou quatro meses, e que, se poderia dizer, estava em permanente leitura.
Aquela era a hora preferida de Ferdinando para mergulhar em si. Pois o silêncio que chegava anunciando a noite, pouco a pouco ia dominando sobre os ruídos de carros na rua, e permitia, gentilmente, que o canto dos pássaros ficasse perfeitamente audível para quem os quisesse perceber.
No céu, de um azul já sombreado pela noite que chegaria logo, podia-se ver apenas os corpos escuros de alguns pássaros voando, como se um desenho fosse, e, já saindo do campo de visão, o rastro branco de um avião que passava alta com sentido de sul a norte.
O engenheiro Ferdinando já estava com sessenta anos, e, embora em seus últimos vinte anos pouco tenha feito para continuar com esse título, e até tivesse se desligado da associação de classe, não havia como se desenvencilhar do rótulo, pois de certa maneira, seu modo de agir e pensar, depois de décadas, estavam condicionados por aquela formação acadêmica e profissional que afinal lhe moldaram as maneiras de agir e de pensar. Ao ponto de que o que poderiam ser qualidades e pontos fortes, poderiam também serem vistos como defeitos e fraquezas. Cartesiano, racional, eram qualificações mínimas. Em tom de brincadeira, foi chamado um dia de múmia paralítica, provavelmente uma crítica velada por muito pensar e pouco agir. Procurava não se importar, racionalizando as críticas, pois essa habilidade fora bastante desenvolvida.
Uma noite teve um pesadelo, em que estava participando – ou submetido - à um jogo em que as pessoas declaravam as qualidades dos demais jogadores. Eram cinco participantes, e, cada um, escreveria em um papel de cinco a dez qualidades dos demais. Ao final, confrontava-se as respostas para cada um, consolidando a relação de qualidades percebidas em comum.
Não foi difícil escrever as qualidades de seus companheiros, e listou no mínimo oito de cada um. Via-se que todos participantes escreviam uma relação extensa, que no início brotava fácil e em pouco tempo cada um dizia ter terminado.
Na sua vez, em que os companheiros deveriam listar suas qualidades, e ele próprio aguardaria em um silêncio quase inanimado, sentiu que o tempo passava, e passava, e ninguém concluía sua lista. Após dez minutos – era esse o tempo limite prefixado – considerava-se apenas o que estava escrito, mesmo que a lista não atingisse o mínimo de seis qualidades.
Começaram a ler as qualidades de cada um, verificando que as percepções convergiam para características que afloravam fácil. Ferdinando seria o último a ouvir seu feed-back, como se chamava tal atividade. Pois bem, todas as supostas listas só tinham um qualificativo para Ferdinando. Seu colega da direita escreveu “calmo”. E nada mais. Os demais conseguiram escrever “inteligente”. E mais nada. Quando disseram em uníssono “essa foi fácil”, Ferdinando decidiu acordar, pois durante todo o jogo ele sabia que aquilo era apenas um pesadelo, e, quando quisesse, acordaria. E assim foi, mas com muita sede e uma dor de cabeça que lhe exigiu tomar um analgésico.
Isso foi a dez anos, mas tal pesadelo tem sido recorrente em algumas noites do engenheiro.
Sem saber lidar com esse seu jeito, tinha como válvula de escape sua criatividade e imaginação, o que lhe motivou a buscar as ficções nos livros, como fazia quando jovem.
Por isso lia já a quatro meses o mesmo livro de contos de Tchekhov. Encantado com este autor russo, que teve uma vida breve no final do século XIX, Ferdinando lia e relia cada conto, grifava com caneta marca texto expressões que lhe chamavam atenção, procurava sinônimos de palavras desconhecidas, e invariavelmente se surprendia pela fluidez do texto e simplicidade dos finais. Mas demorava a avançar, parecendo evitar o último conto – “A dama do cachorrinho” – que dava nome ao livro, e, por isso, deveria ser o clímax da leitura.
Através de Tchekhov, Ferdinando entendeu o realismo na literatura, cujas histórias eram baseadas em pessoas comuns, do cotidiano urbano e social.
Tinha consciência que se refugiava nas vidas daqueles tantos personagens por ali encontrar mais cores e contrastes do que na sua própria, mas buscava também, com aquelas vivências, preencher suas próprias lacunas de experiências não vividas, e, dando sentido aos sentimentos que experimentava naqueles contos, talvez pudesse dar um novo significado aos seus próprios sentimentos sobre a vida.
Em um momento de silêncio total, percebeu que os prédios ao redor já não recebiam os raios solares diretamente, apenas sua claridade, luminosidade esta que, sem esforço, esticava ao máximo o dia, como tentamos fazer em um sonho bom que quer terminar.
Olhou o céu límpido, sem nuvens, já de um azul médio, e descansou o olhar. Já eram quase oito da noite, e Ferdinando levantou de sua cadeira, não pôs os chinelos, pois tinha uma sensação muito boa quando andava com os pés descalços e sentia os diferentes materiais, e foi à cozinha. Era uma cozinha ampla, sem luxo, mas completa. Com todos equipamentos que facilitam e agilizam a preparação de uma refeição, um lanche, ou um simples café. Além do amplo balcão em forma de “L”, que permitia o preparo simultâneo do prato principal, acessórios, sobremesa e aperitivos. Havia ainda uma pequena mesa para quatro pessoas, que dava à cozinha o status de quase-sala-de-jantar. De fato nunca seria uma sala de jantar, pois esta não tem equipamentos como refrigerador e fogão, e sim, uma cristaleira e balcão para guardar a coberta de mesa. 
Abrindo a porta da geladeira, procurou o que sobrara de uma pizza encomendada no dia anterior e alegrou-se por ver que, dentro de uma embalagem plástica transparente, ainda havia um bom pedaço com cobertura de quatro queijos, e também um outro, menor, com cobertura de frutas. Separou a fatia de pizza quatro queijos, suficiente para iniciar o jantar, pois finalizaria com a pizza doce, de frutas.
Ligou o grill, e colocou a pizza salgada para o aquecimento. Não gostava de usar o microondas nesses casos, pois o resultado não era o mesmo. E tinha a desvantagem de ser mais rápido.
Feito isso, olhou a mesa, colocou um prato e talheres para quando voltasse, e, servindo-se de um cálice de vinho tinto, retornou à área de sua casa, aquela sua sala de leitura predileta, para concluir a leitura de Tchekov. Abriu o livro e buscou o conto que havia interrompido, pelo título: “Inimigos”.
A leitura de Ferdinando era lenta, isto porque repetia frequentemente algum parágrafo, ou mesmo um página inteira, e, frente a qualquer termo desconhecido ou de sentido dúbio, pesquisava no dicionário seus significados e exemplos de uso. Parava também frente a expressões desconhecidas ou não usuais, como se quisesse incorporá-las à sua vida. Assim foi com “desafogar o coração” e tantas outras.
Nessas ocasiões não usava dicionário em papel, mas eletrônicos, “on line”, que acessava rapidamente com seu celular.
Ferdinando retomou a leitura meia página antes de onde havia parado. Assim fazia sempre, pois isso também lhe permitia um novo olhar sobre o mesmo texto.
O final do conto já se aproximava. Não porque houvesse sinais na própria história de que se aproximava um desenlace, uma finalização, pois uma das características que percebia e admirava nos contos de Tchekhov era que seu fim não era anunciado. Apenas terminava, como um suspiro de alguém, numa sala vazia, sem plateia. Não era um desfecho da história propriamente. Apenas o fim do conto.
De fato, a virada de folha mostrou apenas mais quatro linhas, que foram lidas pausadamente, para perceber o sentido, mas também a forma de cada palavra.
Fechou o livro, olhou o céu de um azul escuro e bebeu um longo gole de vinho. Sentiu aquele líquido descer de uma forma absolutamente harmônica, como alguém que já é de casa, e que, de certa maneira, alimenta nossa essência.
Levantou-se e dirigiu-se para a cozinha, pois o jantar já estaria pronto.

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