Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







domingo, 14 de dezembro de 2014

PESADELO DE DRAGÃO

Boca seca. Não sede. Só secura. A língua está uma lixa e machuca o céu da boca. O palato. Ao invés de fazer cócegas, arranha. Tive um sonho. Um pesadelo.
Eu era um dragão. Não estava fantasiado, era mesmo um. Não soltava fogo, mas tinha duas cabeças. E nenhum rabo. Então tinha duas frentes e nenhuma traseira. Duas cabeças completas com orelhas, narinas, boca, tocos de guampas. Uma na frente e a outra na outra frente. Quatro patas. Duas voltadas para a frente e duas para a outra frente. Mas uma das cabeças olhava, e se alimentava, do passado. Alimento vencido, esverdeado, podre, vomitado. A outra estava de frente para o futuro e se alimentava dele. Alimento fresco, virgem, não conhecido.


Eu não sabia qual era a verdadeira frente. Angustiado, eu precisava saber qual era a frente do dragão. Para onde deveria andar.
Mas havia um só estômago, que recebia o alimento novo do futuro e o digerido do passado. E essas duas correntes se encontravam, e se chocavam. O problema que esse eu-dragão não tinha aparelho excretor. Não havia intestino. Nem cu. Não tinha saída, só entrada. Acumulação.
Talvez eu me retorcesse na cama. Não sei. Não lembro essa parte. Esses dois fluxos inimigos chegavam junto ao estômago, mas não se misturavam. E a pressão aumentava. Até que, de tanto ingerir os sonhos do futuro, e as mágoas do passado, a barriga foi crescendo, crescendo, inchando, inchando, e explodiu. E as duas cabeças se olhavam e, furiosamente, se acusavam por aquilo, sem esperança de reconciliação. Então, eu pensava, no sonho, houvera uma separação? Em que momento aquele passado e futuro se separaram? Talvez desde o primeiro dia, e todo o dia, o dia passado, ao anoitecer, corria sem fazer alarde em direção aos seus. Tinha sido esperança, até hoje. Agora, passava, era incômodo.
E, já me acordando, não sobressaltado, mas incomodado, eu ainda ouvi uma cabeça gritar para a outra, Tradição! E o outro responder, Liberdade!
Então fui à cozinha, tomar um pouco d´água. Eram quatro e pouco da manhã. Pela janela, vi que a cidade dormia. Sem pesadelos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário