Eu era um dragão. Não estava
fantasiado, era mesmo um. Não soltava fogo, mas tinha duas cabeças. E nenhum
rabo. Então tinha duas frentes e nenhuma traseira. Duas cabeças completas com
orelhas, narinas, boca, tocos de guampas. Uma na frente e a outra na outra frente.
Quatro patas. Duas voltadas para a frente e duas para a outra frente. Mas uma
das cabeças olhava, e se alimentava, do passado. Alimento vencido, esverdeado,
podre, vomitado. A outra estava de frente para o futuro e se alimentava dele. Alimento
fresco, virgem, não conhecido.
Eu não sabia qual era a verdadeira
frente. Angustiado, eu precisava saber qual era a frente do dragão. Para onde
deveria andar.
Mas havia um só estômago, que
recebia o alimento novo do futuro e o digerido do passado. E essas duas
correntes se encontravam, e se chocavam. O problema que esse eu-dragão não
tinha aparelho excretor. Não havia intestino. Nem cu. Não tinha saída, só
entrada. Acumulação.
Talvez eu me retorcesse na cama.
Não sei. Não lembro essa parte. Esses dois fluxos inimigos chegavam junto ao
estômago, mas não se misturavam. E a pressão aumentava. Até que, de tanto
ingerir os sonhos do futuro, e as mágoas do passado, a barriga foi crescendo,
crescendo, inchando, inchando, e explodiu. E as duas cabeças se olhavam e,
furiosamente, se acusavam por aquilo, sem esperança de reconciliação. Então, eu
pensava, no sonho, houvera uma separação? Em que momento aquele passado e
futuro se separaram? Talvez desde o primeiro dia, e todo o dia, o dia passado,
ao anoitecer, corria sem fazer alarde em direção aos seus. Tinha sido esperança,
até hoje. Agora, passava, era incômodo.
E, já me acordando, não
sobressaltado, mas incomodado, eu ainda ouvi uma cabeça gritar para a outra, Tradição!
E o outro responder, Liberdade!
Então fui à cozinha, tomar um
pouco d´água. Eram quatro e pouco da manhã. Pela janela, vi que a cidade
dormia. Sem pesadelos.
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