Publicado na Folha de São Paulo, Edição Impressa de 29/10/2019
Para onde foi a vovó é pergunta tão fácil quanto impossível
de responder.
Vera Iaconelli
Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na
Maternidade” e "Como Criar Filhos no Século XXI". É doutora em
psicologia pela USP.
O psicanalista Mario Eduardo Costa Pereira, autor do
best-seller “Pânico e Desamparo” (Escuta, 1999), começou sua fala num evento
recente de psicanálise avisando que precisaria sair impreterivelmente às 12h00.
Completou a informação com a frase: “tenho que encerrar no horário marcado,
pois vamos todos morrer”.
Obtida a esperada reação, Pereira explicou que, se não
fôssemos morrer, não teríamos porque nos preocupar com a duração dos eventos,
que poderiam estender-se eternamente.
A morte, parafraseando Protágoras de Abdera, “é a medida de
todas as coisas”, sem a qual, nada do que fazemos teria sentido.
Lacan dizia que só aguentamos a vida na condição de sabermos
que ela acaba e Winnicott deixou a dica de tentarmos estar vivos até o momento
de nossa morte.
Para a psicanálise, a morte auto imposta, como no suicídio,
e a existência de “mortos-vivos” são temas cruciais para refletirmos sobre o
viver.
Vale a leitura do dossiê da revista Cult de outubro, que
aborda o suicídio, assunto urgentíssimo. Os mortos-vivos, por sua vez, nunca
estiveram tão em alta como hoje. “Ensaios sobre Mortos-Vivos”, de Diego Penha e
Rodrigo Gonsalves (Aller, 2018), nos dá a dimensão da importância de pensarmos
as existências alienadas e psiquicamente empobrecidas que se multiplicam à
nossa volta.
Por volta dos três anos de idade, as crianças já estão bem
interessadas na questão “de-onde-viemos-e-para-onde-vamos?”. Para onde foi a
vovó ou para onde foi o peixinho são perguntas tão fáceis de responder quanto
impossíveis.
Se podemos indicar onde corpos inertes são jogados ou
sepultados, não temos a mínima ideia sobre o destino do que os animava.
Sempre me surpreendeu a insistência de Freud em querer saber
o porquê de sofrermos tanto diante da perda do objeto amado. Afinal, não é
óbvio?
Imagino o fundador da psicanálise como uma criança pentelha
que perguntava sobre tudo sem parar e que, diferentemente das demais, cresceu
sem se emendar.
A pergunta que não quer calar, e que se escancara diante da
morte, é sobre o destino a ser dado à falta que o outro nos faz. Para onde vai
o amor anteriormente investido, depois que o amado desaparece? De onde virá o
amor, depois de sua perda? O luto é o penoso e incontornável processo de
transferir o investimento amoroso para outros objetos para que a vida possa
seguir sem, no entanto, deixarmos de sentir a falta.
Lidando com a morte do próprio pai, Freud escreveu sua
obra-prima “A Interpretação dos Sonhos” (Companhia das Letras, 2019), dando um
destino magnífico para seu sofrimento. Em “Luto e Melancolia” (idem, 2010), foi
enfático em não recomendar o tratamento do luto, pois qualquer um de nós teria
as ferramentas para realizar esse processo.
Caso contrário, não teríamos como suceder nossos pais,
companheiros, filhos... É sabido, no entanto, que nossa época vai na contramão
de todas as condições à elaboração do luto preconizadas por Freud, dificultando
aquilo que por si só costuma ser duríssimo.
Minha filha me perguntou, por ocasião da morte do tio, para
onde ele tinha ido. Ela tinha três anos. Respondi que algumas pessoas
acreditavam que ele tinha ido para a terra e outras que ele estava no céu, de
fato, ninguém sabia, mas que o duro mesmo era a falta que eu sentia dele.
Depois de calcular um pouco, ela disse que preferia acreditar no céu.
Cada um que escolha sua resposta, desde que não nos furtemos
a falar sobre a certeza da morte.
Afinal, não temos a eternidade para abordar essa conversa.
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