Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Picolés, nunca mais.


Com certeza eu não diria que empurrar carrinho de picolé o tempo todo me dá prazer. De maneira nenhuma. Quando caminho muito, sem que nenhum freguês me chame, e isso acontece com freqüência, me sinto meio homem, meio bicho, a empurrar aquele peso de uma rua para outra. À tocar aquela corneta. Em vão.
Então, quando passa por mim alguma carroça, fico com inveja do cavalo, troteando rápido e faceiro. A vantagem de ser cavalo, em relação a ser gente, é claro, é que ele parece não ter consciência do que está fazendo.
Não sabe a que horas saiu de casa ou mesmo a que horas voltará a ter descanso, embora eu ache que ele sabe que vai ter descanso. Como gosto muito de animais, estou sempre comparando as pessoas com eles.
Lembro de uma ocasião em que, conversando com um freguês, um tal professor de filosofia, eu disse que tinha memória de elefante. Não sei por quê disse. A rigor, eu só repeti essa expressão porque tinha ouvido num programa sobre a África, na televisão, e desde então eu passei a repetir com freqüência. Para não faltar com a verdade, confesso que nunca vi um elefante ao vivo. O mais próximo que estive de um elefante- ao menos da oportunidade de conhecer um elefante - foi uma única vez que esteve um circo em minha cidade. Mas, infelizmente, não tinha elefante. Apenas um leão velho. Por isso não os conheço. No sentido próprio, é claro. Pois, quando criança vi um filme do elefante Dumbo (ou seria um livro ?). Impressionou-me demais! Isso porque Dumbo conseguia voar e eu achava que seria o máximo poder voar e ver tudo lá de cima. Mas não queria ser um passarinho, pois os passarinhos são animais muito delicados e estão sempre na mira de uma pedrada, ou de uma armadilha. Além disso, eu nunca pousaria num fio elétrico. Tenho muito medo disso, desde que enfiei, sem querer, o dedo num suporte de lâmpada e além de levar um choque danado, me cortei todo, pois o dedo ficou preso e tive que arrancá-lo de lá de qualquer jeito. Lembro que eu chegava a tremer pelo choque. Por tudo isso, a idéia do elefante que voa me pareceu fantástica. Nada de fios, nada de gaiolas. Por muito tempo eu sonhei em ser um elefante que voa, fazendo aquele barulhão danado com a minha tromba. Mas o fato é que a maioria dos elefantes, ou quase todos, não voam, e estão tendo muitas dificuldades para se safar dos domadores e dos caçadores. Mas sempre ouvi dizer que os elefantes nunca esquecem, o que reforça a afirmativa de que têm muita memória ou, pelo menos, memória de elefante.
O fato é que o tal professor de filosofia, entre citações de vários filósofos – eu só gravei Platão e Kant, pois os outros eu nunca ouvira falar -, tentava destruir esse meu conhecimento a respeito da memória dos animais. Fazia referência até a Bíblia, citando passagens do Velho Testamento, em que Deus dizia ao homem que seria o senhor do mundo, dos animais, e de tudo o mais. Sinceramente, eu nunca fui muito religioso, também tenho muita dificuldade para entender alguns mistérios e verdades das religiões. Mas o pouco que aprendi sobre Jesus Cristo, me fazia pensar que ele não concordaria com muito do que estava escrito nos primeiros livros da Bíblia. Jesus Cristo, esse sim, eu admirava. Embora houvesse oportunidades em rodas de conversa, eu nunca aceitei questionar se ele existiu ou não, pois achava isso absolutamente irrelevante. Para mim, bastavam as histórias e as lições do novo testamento. Eu adorava ouvir todas aquelas que iniciavam com "Naquele tempo ...". Também gostava daquelas que iniciavam com "Era uma vez ...". Mas estas não estavam na Bíblia.
Voltando ao assunto do professor, eu posso dizer que gostava bastante de nossas conversas. Enquanto ele saboreava um picolé de limão, às vezes introduzindo meio picolé em sua bocarra, outras espichando a língua para enxugar um pingo que se formava, eu colocava sempre a mesma questão que ele nunca soube resolver ou dar uma explicação satisfatória. Eu dizia que os animais tinham memória sim, e a prova é que os cachorros guardam seus ossos e depois vem busca-los. Ora, isso só acontece por terem noção de futuro e de passado, eu argumentava. Nesse momento, o tal professor já estava terminando seu picolé e, muito concentrado no que fazia, sem deixar cair um pingo sequer, saboreava o palito até sentir o gosto da madeira pura, pensando, talvez, na resposta que me daria. Ao final, examinava bem o palito, costume de criança que quer encontrar um palito premiado com direito a outro picolé, e dizia que ia pensar no assunto e conversaríamos no dia seguinte. Eu gostava mesmo do professor. Foi ele que me ensinou o que era o tal de gelo seco. Esse gelo que a gente usava nos carrinhos de picolé. Gelo que nunca derretia e se transformava em fumacinha, como diziam meus colegas. Primeiro, me disse o professor uma vez, não é fumaça, mas apenas vapor do gelo. Gozado, sair vapor do gelo. E me explicou tudo o mais que nem vou repetir agora. Apenas digo aprendi que o gelo seco fica a -78 graus. Náo dá prá imaginar. Até os picolés ficam com frio. Eu, pelo menos, super resfriado. Pois esse era o professor. Falava de Platão a gelo seco.
Essa era a melhor parte de meu ofício. Em todo lugar que eu ia vender picolés, as pessoas buscavam também um pouco de amizade, um pouco do tempo perdido. Muitos fregueses me conheciam fazia muito tempo e já me chamavam pelo nome.
Havia uma outra coisa que me entretinha bastante. Eu achava muito engraçado, e às vezes fazia aposta comigo mesmo, sobre como as pessoas escolhiam o sabor do picolé. Tentava até fazer algum tipo de correlação científica sobre os motivos de ordem psicológica que determinariam a escolha do sabor do picolé. Mas, o fato é que eu sempre me perdia em meus próprios raciocínios. Faltava-me capacidade de sistematização e análise, me disse um outro freguês. Não entendi bem o que ele queria dizer.
Vou explicar que a indústria do picolé, e do sorvete em geral, se desenvolveu muito. Se no início havia apenas creme, ou ovos, e depois chocolate, hoje há picolés de tudo quando é fruta, imitando bombons e doces e outros tantos quantos foram criativamente desenvolvidos. E todos eles estão expostos no lado de fora do carrinho, para facilitar a escolha. Não exatamente eles, pois derreteriam com o calor, mas eu me refiro às fotos desses picolés. Isso foi um grande avanço, pois a pior coisa que tem para um vendedor de picolés é quando o freguês não sabe o sabor que quer e decide escolher vendo cada um com a tampa do carrinho aberta. Além da perda do frio, aumenta muito o consumo do gelo seco e às vezes temos que voltar ao distribuidor antes do final do dia para repor o gelo seco.
É claro que tem coisa pior. Por exemplo, quando o freguês, normalmente criança, deixa cair o picolé e ao pegá-lo vira para a gente e diz qualquer coisa como “está quebrado, moço”. No final do dia ficam vários picolés quebrados num canto do carrinho. Por sorte, o distribuidor aceita que isso aconteça, pois decerto também já foi vendedor ambulante. Entre os meus picolés quebrados e dos meus colegas, que são uns trinta, o distribuidor tem um bom prejuízo. É certo que ele e sua família até comem alguns picolés quebrados. Mas não se pode comer picolés quebrados todo o tempo. Principalmente se você aprecia picolé de chocolate e naquele dia só tem de limão. E ainda quebrados! Você deve ficar muito ácido.
Eu realmente não sei onde vão parar todos os picolés quebrados. Mas francamente não me preocupo com isso. Também ninguém sabe onde vão parar os guarda-chuvas perdidos e esquecidos. E olha que não são poucos! Eu mesmo já perdi vários, e nunca achei nenhum.
Mas tirando os picolés quebrados, os guarda-chuvas e os chatos, a maioria dos fregueses examinava a foto de todos os sabores, perguntava por um ou outro, e acabava pedindo o que sempre pedia. Cheguei até a fazer uma estatística. Descobri, por exemplo, que professores e médicos gostavam de picolés de frutas, de preferência as cítricas, mais ácidas. Muitos até diziam “de doce, chega a vida”. E eu sempre concordava. Engenheiros gostavam de picolés com chocolate, podendo ser de um só sabor ou de creme com cobertura de chocolate. O problema da cobertura é que fica uma casquinha de chocolate muito dura, e às vezes, quando se morde o picolé, ela quebra e cai algum pedaço. As pessoas se dão conta quando a casquinha de chocolate cai no chão. Quando fica na camisa, eu é que me dou conta, mas não falo. É pena perder essa casquinha, pois o ideal é comer essa casquinha de cobertura com o próprio recheio, de preferência nata. Acho que, como combinação de sabores, essa é a ideal. Chocolate com nata. Com coco também é bom. E com creme de baunilha também.
As crianças também tinham seus preferidos. Os menores gostavam dos mais sofisticados, mas as mães quase nunca deixavam que escolhessem e só permitiam que escolhessem chocolate. Porque alimenta mais do que os de fruta, elas diziam. Eu até acho que é por isso que depois de adultos as pessoas continuavam pedindo chocolate. É, de fato, o campeão dos sabores. Eu também gosto de picolé de chocolate. O que sempre me intrigou é que poucas pessoas escolhiam o meu preferido, o picolé de coco. Não sei explicar porque gosto tanto de picolé de coco. Não que eu rejeite os outros picolés, pois dependendo do momento, como qualquer um. Inclusive, antes de terminar meu dia de trabalho, ao deixar o carrinho no distribuidor, sempre pego um picolé. E faço a escolha de olhos fechados, para dar chance a todos. De certa maneira todos os sabores são importantes e me ajudam a ganhar a vida, e, sendo assim, devo-lhes um mínimo de retribuição. Mas na maioria das vezes acerto na escolha: coco. Sem trapaça, é claro. Talvez o que mais gosto no coco, são as fibras que ficam na boca quando a gente nem lembra mais que comeu um picolé.
Eu não poderia deixar de contar que eu tive um freguês que só apreciava picolés de coco. Por muitos anos, durante a temporada de verão, ele comeu meus picolés de coco. Dizia ele que nos últimos dez anos, quando começou a contar, já teria comido 850 metros de picolés de coco. Eu não cheguei a calcular, mas com certeza era muito picolé. Provavelmente muitos cocos. Talvez a produção de mais de um coqueiro durante toda sua vida. Eu até imaginava o apanhador de cocos, subido lá em cima no coqueiro, colhendo os cocos que seriam transformados nos picolés que eu venderia. Pois foi esse freguês, Seu Antônio que me convenceu que o picolé de coco era o mais nobre dos picolés. Motivos e razões é que não lhe faltavam. Mas já fazem dois verões que Seu Antônio não aparece. Talvez por isso, tem sobrado picolés de coco em meu carrinho.
Apenas por curiosidade, vou contar um fato pitoresco que me aconteceu com relação aos picolés de coco. Num determinado veraneio apareceu uma família que alugou uma casa numa rua em que eu passava todas as tardes, quando iniciava a minha rotina de oferecer os picolés para quem recém tinha almoçado, e assim, eu entrava com a sobremesa. Pois nessa casa havia um rapaz de, talvez, uns dezessete anos, que me causou problemas. Decerto, eu também o incomodei, mas sem intenção. Acontece que o rapaz tinha alguma incapacidade que lhe afetava a fala, embora no início eu achava que apresentava apenas uma certa gagueira. Pois por três dias seguidos, assim que chegaram à praia, ele vinha em direção a mim, com o dinheiro na mão e pedia “pi-co-co-lé”. Antes que completasse com o sabor, eu já estava estendendo a mão com um picolé de coco. No primeiro dia ele ficou bravo e me deu as costas. No segundo, sem querer, entendi novamente que ele queria picolé de coco e ele saiu gritando qualquer coisa. No terceiro dia eu tive de mudar meu roteiro, pois não queria errar novamente. Só voltei àquela rua quando eles foram embora. No fim das contas, fiquei um pouco triste, pois poderia ter proporcionado uma alegria diária àquele rapaz. Mas de fato quando ele dizia “pi-co-co-lé”, eu já tinha entendido que pedia pelo sabor coco.
Sempre que começo a lembrar dos meus fregueses e da satisfação quando comem seus picolés, quase me esqueço de tudo. Em poucas profissões se pode ficar frente a frente com a satisfação tão franca e ingênua de seus clientes.
Até o peso do carrinho diminui. O sol, a chuva. Tudo desaparece. Mas tem uma coisa que realmente me faz sentir tristeza. É quando a temporada está terminando. Embora a venda de picolés até aumente, pois as pessoas, também tristes, querem se desfazer de seus trocos por uma porção gelada de alegria e juventude, sente-se no ar que termina mais um período. Muitos se preparam com planos para o novo ano, mas há os que se entristecem por ter de transpor para o ano seguinte, suas frustrações, seus insucessos e suas expectativas.
Eu reparo nos olhos de cada um tentando descobrir o que estão sentindo e procuro conversar um pouco. As vezes, desconversar um pouco. Sinto que consigo alegrar os mais tristes e dividir a alegria dos mais otimistas. Mas os meio-alegres e os meio-tristes, que não sabem o que esperar do ano seguinte, esses são tão difíceis de atingir!
Nesses dias tomo a decisão de, no ano seguinte, mudar de profissão. De tentar ser padeiro, ou verdureiro. Padeiro, não sei não. Só se for para ficar no caixa cuidando do dinheiro, pois já vi muita gente reclamando do pãozinho, muito torrado, ou pouco cozido, ou muito massudo. Talvez seja melhor verdureiro, pois acho que estes não dão alegria para ninguém. Eu não conheço quem coma verdura por prazer. Pelo menos com o prazer do picolé de coco.
Por tudo isto, estou novamente decidido a mudar de profissão.
Vendedor de picolés, só no ano que vem.

3 comentários:

  1. Leozinho, tentei ler em um dos momentos de ócio no trabalho, mas não consegui seguir adiante. Me esforçei, mas não pude controlar a minha vontade de rir e qual a graça de ler tudo isso se eu não posso rir em voz alta, mas só por dentro? As tuas pílulas de humor fazem um bem danado para aqueles que se permitem "viajar" junto contigo em cada uma das histórias... vou deixar para te acompanhar em um horário mais apropriado, menos sério e aproveitar ao máximo o que esta leitura pode me possibilitar: intermináveis sorrisos que melhoram o humor e nos inspiram a ser mais leves, mais divertidos, mais felizes! bjo

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  2. Finalmente, cheguei ao fim da história... Será que o Tonho pensava tudo isso??? Se pensava, certamente, era feliz! Eu tinha orgulho de chamá-lo pelo nome, era mesmo um amigo de verão, que todo o ano me proporcionava prazer somente ao ouvir a sua corneta e as rodas do seu carrinho pulando pelos buracos da rua... bons tempos aqueles! Se eu encontrar o Tonho esse verão, vou pedir um picolé de coco, pois tb é dos meus preferidos, embora não rejeite um com chocolate. Quem me conhece sabe que eu não rejeitaria nenhum, afinal só temos o verão para comer picolé e agora o verão se resume a 8 finais de semana, senão menos... Já estou sendo tomada por um sentimento triste, assim como fui ao final da tua história. Do sorriso, me brotaram as lágrimas e depois novamente o sorriso - agora de esperança! Sério, não sei se mais alguém te compreende e compreende as tuas histórias, mas para mim tu e elas enchem a vida de sentido! Cá estou eu de novo com os olhos cheios de lágrimas. Vou pular para as postagens acima, pode ser que ali novamente se faça um sorriso no meu rosto! Estava realmente precisando dessa leitura! Quanta emoção!

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  3. "...Mas os meio-alegres e os meio-tristes, que não sabem o que esperar do ano seguinte, esses são tão difíceis de atingir!..."

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