Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







sábado, 19 de março de 2011

DEUS VÊ TUDO

“Deus vê tudo.” Não lembro se estava em letras maiúsculas ou não. Nem tenho certeza que aquela placa estivesse em todas as salas de aula. Me parece que sim, mas, a esta altura, não importa. Recordo que aquela inscrição azul sobre uma placa branca, semelhante às placas usadas com a indicação dos nomes de ruas, me acompanhou nos vários anos em que estudei no velho e bom Colégio Rosário. Essa é uma das importantes lembranças. Há tantas outras!

Não sei porquê isso me veio à lembrança. Ou melhor, não saberia dizer porquê isso volta e meia me vem à lembrança, quando estou só, e me afasto das pessoas – ou da multidão - , para ficar apenas observando. Certamente Freud explicaria, segundo muitos malucos que, apesar disso, são levados muito à sério. Há quem os pague – e muitas vezes bem pagos – para ouvir suas interpretações. Malucos ouvindo malucos.

Já estava esquecendo de me apresentar. Sou Ferdinando John. Ferdinando por parte de mãe e John por escolha do pai. Quem me conhece já sabe dessa estória. Para quem não me conhece: “muito prazer, Ferdinando John!”

O caso é que ficar observando as pessoas, para mim, Ferdinando John, é uma distração e tanto. Principalmente em situações de espera. Não tanto em salas de espera de consultórios, que são ambientes pequenos e não deixam as pessoas muito à vontade. Mesmo aquelas que tentam fugir do que lhes espera e folheiam qualquer revistinha idiota atentamente. Também, por serem ambientes pequenos, a observação ficaria tecnicamente prejudicada. É que o observador tem que se afastar do objeto a ser observado, pois quanto mais próximo mais ele contamina o resultado da observação.

Mas, principalmente, como agora, em salas de embarque de aeroportos, a atividade observacional pode ser desenvolvida quase em sua plenitude. Aqui, todos ficam atentos aos avisos e ansiosos pela expectativa de embarcar, e poucos conseguem arriscar se concentrar em algo. Ou se distrair com algo. Conversar tranquilamente, ler um livro, ou mesmo ficar observando, como estou. Isso só ficando à margem.

Prefiro sempre as poltronas mais afastadas, encostadas nas paredes, sem ninguém às minhas costas. E, embora não tenha feito nenhuma observação de natureza estatística, me parece que essas poltronas mais reservadas são o refúgio para pessoas que, como eu, buscam a não exposição, protegendo-se de algo que Freud também explicaria.

Eu cheguei fazem não mais do que cinco minutos. A sala de embarque estava – e ainda está - relativamente tranqüila. Faltam ainda 1h35 para meu vôo. Isso se estiver no horário. Mas deve estar.

Enquanto, nas cadeiras de meio, o movimento é maior – gente comendo, falando alto, olhando o relógio -, aqui onde estou, parece tudo mais tranqüilo. Movimento mesmo, apenas no café e na revisteria. Sempre que eu escrevo “revisteria” o meu Word reclama. Eu sei que essa palavra não está nos dicionários. Mas é uma questão de tempo. Revisteria: substantivo feminino, local onde se compra revistas.

A três lugares do meu, para a direita, um senhor lê um jornal. Me pareceu que o jornal já estava na cadeira quando ele chegou, decerto deixado por alguém. Já era um jornal lido. Mas quem se importa de ler um jornal já lido. Para mim é como ler um jornal novo. A menos que esteja mal dobrado, amassado e totalmente fora de ordem. Mas nada que um pouco de paciência não resolva. Por sinal, a quantidade de lixo gerada pelos jornais e revistas, mereceria uma campanha para socializar a leitura. Nesse aspecto, pensando sob a ótica do meio ambiente, o jornal custa muito pouco, pois o que pagamos por ele, não indeniza o meio ambiente. E olha que às vezes só tem lixo. As notícias já são propriamente um lixo. Mas quem se importa ? Meu vizinho da direita está entretido no jornal. Parece que lê o caderno de esportes. Talvez futebol. Em suma, quase o lixo do lixo.

À minha esquerda, um pouco mais adiante, uma senhora também lê. Um livro. Senta muito ereta, como os praticantes de "pilates". Muito concentrada. Só faz uma pequena pausa para ajeitar os óculos de grau, posicionando-os mais próximo dos olhos. Quando faz isso, levanta o olhar, faz uma rápida varredura de menos de 180 graus, e imerge novamente em sua leitura. Quando passei por ela, reparei no livro. Me pareceu que era “Perdas Necessárias”. Tenho quase certeza. A ilustração da capa não me engana. É uma capa verde, com uma estrada asfaltada reta, subindo pela capa do livro. Tem uma sinalização estranha. A estrada tem uma sinalização estranha.

Nunca consegui passar da pg 33, desse livro. Quando digo pg 33 é só para dar uma referência, pois pouco me lembro do que li. Ou até onde li.

Faz muito tempo, numa viagem de ônibus, vi uma pessoa lendo as “Perdas Necessárias”. Achei muito interessante, e aderi imediatamente à idéia. Achei também aquela pessoa muito culta. Afinal, numa viagem de ônibus não se espera que alguém leia algo mais denso do que “Quem mexeu no meu queijo?” Se ainda fosse numa cafeteria, ou num avião ? Mas em viagem de ônibus, não é qualquer um que lê “Perdas Necessárias”.

Fiquei definitivamente impressionado, quase comovido, pois o que de mais importante eu tinha lido até então, era “O Meu pé de laranja lima”. Em terra de cego eu até que fiz bonito, lendo “O Meu pé de laranja lima”. José Mauro de Vasconcelos. Era o autor. E Zezé, se não me engano, era o personagem. Eu já tinha lido “Rosinha, minha canoa”, e havia chorado muito pelo que passou o Zé Orocó.

É óbvio que eu já tivera outras leituras, além das revistas em quadrinho. Minha primeira revista em quadrinhos teria sido o Fantasma. Teria sido, mas não foi. Explico, pois essas lembranças ainda estão muito claras.

Eu teria na faixa de 6-8 anos, e me recuperava de alguma doença infantil. O que me obrigou a ficar em casa, talvez de cama, alguns dias. Quando já estava melhor, em condições de dar uma primeira saída à rua, eu pedi à minha mãe uma “revistinha”. Nessas ocasiões os pais fazem qualquer coisa, das mais importantes até as mais idiotas, para “ajudar os filhos” a se recuperar. A banca era próximo de casa, morávamos no interior, e ganhei um dinheirinho para ir até lá comprar uma revistinha. Seria minha primeira revistinha. Não lembro como se deu a escolha, mas cheguei em casa com uma revista do Fantasma (hoje eu sei que era o Fantasma, na ocasião era apenas uma revistinha com um mascarado e um cachorro na capa).

Pois, errei na mosca. Minha mãe, como todas as mães, sempre sabem o que é o melhor para os filhos, e aquela revistinha, em preto e branco, com lutas do mascarado, e com um lobo na capa (será que era lobo), definitivamente não era apropriada para mim. Tive que voltar e trocar, pois eu iria ficar assustado com aquele lobo. Teria pesadelos à noite. Eu veria o fantasma do lobo. Mas nunca soube de alguém que viu fantasma de animal. Nem de lobo, nem de vaca, nem de formiga, ou bicho algum. Até é possível que os cachorros tenham pesadelos com fantasmas de cachorros. Quem tem cachorro pode observar que às vezes eles tem um sono agitado, aparentemente estão sonhando. Ou tendo pesadelos. Talvez um fantasma de cachorro os estejam perseguindo. Isso é bastante estranho, em se tratando de cachorro. Ou qualquer outro bicho. Se os psiquiatras estão certos (por sorte estão só chutando) os sonhos vem de nosso inconsciente, infiel depositário de traumas, medos, e outras tantas coisas terríveis. Até aí, temos acreditado. Mas e os cachorros. Cachorro com inconsciente ? E se tem inconsciente, é porque tem um consciente. Que cachorrada danada !

De qualquer maneira, minha mãe sabia me proteger dos perigos. Não seria aquela revistinha a mexer com meus fantasmas.

Passados 40 anos, eu lembro mais da Rosinha do que da Laranja Lima. Mas aquele eu li no anonimato, enquanto que “O Meu Pé de Laranja Lima”, me deu reconhecimento. Eu era muito culto. Tinha lido “O Meu Pé de Laranja Lima”. Já pensou ? Quê cretinice!

Lembro ainda que depois daquela viajem de ônibus, comprei um exemplar de “Perdas Necessárias”. Foi na feira do livro. Numa primeira banca apenas folhei o livro. Quais seriam aquelas perdas necessárias ? Depois de passar por quase a metade das bancas, me decidi a comprar. Não lembro quanto era. Mas tinha os tradicionais 20% de desconto. Não comprei para mim, mas era um presente, visando confortar uma pessoa próxima por uma perda. Mas já, aí, me parecia idiotice tudo aquilo. Ora, perdas necessárias. As perdas, me parecia, que seriam absolutamente desnecessárias. E de uma inutilidade a toda prova. Mas fazer o quê.

De qualquer maneira, o título é atrativo, pois quem de nós não passou por perdas. Grandes ou pequenas, únicas ou continuadas. Mas convenhamos, todas desnecessárias.

Um pouco mais adiante dessa senhora leitora, havia um jovem casal, também aguardando o embarque. Cada um tinha uma mochila, que no momento servia de encosto nas cadeiras. Os dois pareciam cochilar muito levemente. Com os ouvidos atentos aos avisos.

Talvez já viessem de mais longe, pois aqueles cabelos amassados indicavam já que a viagem não estaria começando aqui.

Agora aumentou um pouco o fluxo das pessoas chegando para o saguão de embarque. Mas ainda faltam perto mais de uma hora para a chamada. Mais alguns instantes e a fila já vai se formar. Aquela fila enorme, antecipada, motivada por pura ansiedade. Ah, se eles soubessem como é tranqüilizador ficar só observando tudo isso.

Eu fico sentado, até que a fila toda tenha embarcado. Não a fila, mas as pessoas da fila. Então, parecendo um velho lobo do mar, pego minha pequena maleta, com rodinhas e entro no avião, buscando rápido meu lugar.

Vou dar uma espichada nas pernas. Aproveitar que tem pouca gente e muitas poltronas. Daqui a pouco, quem for ao ar perde o lugar.

E aqueles dois ali, um lendo a mão do outro. Ela, uma riponga, com um vestidão todo floreado. E ele, com cara de cafajeste recém saído da novela das oito. Passo por perto, como quem não quer nada, olhando os aviões no pátio. Vejo um Jumbo da Air France. Bem à minha frente está um A300 da TAP. Ele, o cafajeste, chama a atenção para a linha da vida na mão dela. Examina a mão e olha nos olhos dela. Um olhar profundo. Até aqui ela é rasa, superficial, tem muitas curvas e ramificações. Mas neste ponto ela afunda. Fica bem marcada. Foi quando nos conhecemos, meu amor. Disse o imbecil.

Putz, eu mereço ouvir essa cretinice. E ela, a riponga, embasbacada. Tenho vontade de chamar a SAMU. Ou os bombeiros. Prá recolher esse cara de pau.

Não quero mais saber de espichar as pernas. Vou ficar quietinho no meu lugar. Mas bem que eu poderia pegar um café. Ok. Vamos rapidinho. É bate e volta. Tudo por um revigorante mocacino. Faz já uns três anos que troquei o capucino pelo mocacino. Acho que o mocacino é recente no Brasil. A diferença pode parecer sutil, mas com o tempo a gente desenvolve o paladar e nota se o mocacino é feito com café tipo moca, ou se é qualquer expresso misturado com leite e chocolate.

Alguém me chamou ? Fico concentrado pagando o café e ouço de novo. Ferdinannnndo ! me viro e o cara me cumprimenta efusivamente. A quanto tempo, o que andas fazendo ... Esse cara foi meu colega. Quando tinha cabelos e pesava 30 kg menos. Mas quando exatamente? Já sei, era o Freire. Da faculdade. Quê coincidência, diz ele. Faz muito tempo que não encontro ninguém da nossa turma. E hoje parece que é o dia. Sabe quem eu encontrei no check-in ? O Freire! Lembra do Freire? Muita gente pensava que éramos irmãos. Nos achavam parecidos.

Não é o Freire. Quem será? Azar, vou prospectar. Tchê, digo eu, tocando em seu braço, estou tentando lembrar de todo o teu nome.

João Santos Freitas Pilaw. Pilaw com dáblio. Vocês ficavam me gozando, me chamando de Pilão. Pilão é o cacete, eu dizia. E já queria sair na porrada!

Mas claro, era o Pilaw. Nos idos da década de 70, Pilaw só falava em dólares. Para ele tudo era precificado em dólares. E, naquela época, não tínhamos nenhum contato com câmbio, exterior ou o quê tivesse a ver com dólares. Eu mesmo nunca tinha visto uma nota de dólar. Pois o Pilaw já era internacionalizado. Precursor da globalização. Grande Pilaw. Com dáblio. Já o Freitas, de cuja fisionomia não recordo mais, era um que arrotava na aula seguinte ao recreio. Acho que tomava Pepsi ou Cola, uma porcaria dessas, e fazia questão de arrotar enquanto o professor fazia a chamada. Por óbvio, não respondia a chamada de seu nome com um arroto, mas passados alguns nomes, lá vinha a tradicional manifestação do Freitas, tentando sempre se superar na extensão daquela emissão sonora. E, também, como sempre, algum engraçadinho sempre dizia “cancela o veterinário que o porco deu sinal de vida”. É isso que lembro do Freitas. Um arrotador.

Conversei um pouco mais, soube que o Pilaw era trader de commodities petroquímicas (que coisa chique, eu pensei, nem tem como dizer em português), com escritório virtual na Áustria. Essa eu não entendi, mas não perguntei. Se é na Áustria, não seria real?

Mais um pouco e me despedi, tu não mudaste nada, foi bom te rever, temos que nos encontrar, boa viagem, um abração, etc., e voltei com o capuccino para minha poltrona de espera. Apesar da conversa toda, o café não tinha esfriado. O copinho era de poliestireno expandido, que segundo os especialistas (especialistas em quê mesmo?), vai continuar como poliestireno por mais de 500 anos. Será razoável isso por um simples café ? Se você não sabe o que seja poliestireno, já vou avisando. Não perde nadica de nada. Poliestireno é uma droga qualquer. Como muitos polis que tem por aí.

Já noto que o saguão está mais cheio. O burburinho aumentou bastante e, mesmo daqui onde estou, já ouço mais e mais vozes. Muitas conversas. A ponto de não conseguir mais me concentrar em algo que não seja essas pessoas todas.

Ouço ao longe um “sou português”. O verdadeiro “português” pronunciado como só os portugueses o fazem dizer. Estava com uma mulher na faixa dos 50 anos, de elegante simplicidade, com cabelos pretos relativamente longos. Talvez portuguesa ? Aquela visão, ao som do “sou português”, me remeteu à um romance que li recentemente. “Trem noturno para Lisboa”, escrito por um suíço de Berna, Pascal Mercier. Com perfeição, o autor narra a pronúncia do “português”, em que o “o” é substituído pelo “u”, um “e” abafado e um chiado claro ao final. Diferentemente de agora, foi falado por uma portuguesa, que na minha imaginação poderia bem ser aquela à minha frente. Mas não seria, é claro.

Eu não diria que as portuguesas são referência de beleza, mas, mesmo sem conhecer nenhuminha delas, as tenho como muito simpáticas. Como aquela portuguesa que trabalhava para o personagem de Colin Firth (O discurso do Rei), no filme “Simplemente Amor”. Ele, se não me engano, um escritor atrapalhado, e ela, contratada como ajudante, ou governanta, ajuda a colocar um pouco de ordem nos papéis e também em sua vida. Ao final, ele a busca na Lisboa antiga, num restaurante lindo e típico, ao som da melhor guitarra portuguesa, aquelas cujas cordas falam diretamente com o coração.

Quem me dera estar indo agora para Lisboa, embarcando em um vôo da TAP, e, amanhã ou depois, poder ouvir um fado acompanhado por bacalhau às natas com um bom vinho, seja do Alentejo, do Dão ou Bairrada. Eu lembro perfeitamente do todas minhas idas à Lisboa, mas as sensações, os pensamentos que tive nessas ocasiões já começam a me fugir, um a um, depois de perder a clareza que tiveram um dia.

Ainda faltam 45 minutos, e definitivamente não pretendo me arriscar novamente a andar por aí. Isto é quase um zoológico. Ainda bem que não consigo ouvir todas as conversas. A rigor, eu também não vejo tudo. Uma pequena vantagem de não ser Deus. Como debochava um velho amigo, “em terra de cego, quem tem um olho é Deus”. Pode ser.

Pois “Deus vê tudo”. É o que diziam as placas nas salas de aula do Colégio Rosário. O velho e bom Rosário.

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