Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







quarta-feira, 4 de abril de 2012

A PRIMEIRA MONARK A GENTE NÃO ESQUECE

Ferdinando John também gosta de Campari. Não pretendo enumerar ou realçar aqui as muitas coisas que Ferdinando John gosta - e já adianto que são muitas mesmo – mas quero dar ênfase que, assim como eu aprecio um Campari com muito gelo e limão, Ferdinando John também. Não diria que goste mais do que eu. Nem menos. Apenas, como eu, gosta de Campari.

Houve ocasiões em que eu tomei dois Camparis – com limão e gelo – e Ferdinando preferiu uma cerveja. Mas também lembro uma ocasião que me apetecia mais um vinho do Porto, pois estava um pouco frio, do que Campari gelado. Nesse dia eu não acompanhei Ferdinando John. Tomei meu vinho do Porto. Não lembro se era tipo Ruby ou Tawny. O que dá no mesmo, pois gosto de ambos. Por mim nem precisava fazer essa distinção.

Também, como eu, Ferdinando John gostava de vinho do Porto como aperitivo, antes do almoço, pois à noite não costumava aperitivar. Nunca conversamos sobre isso, sobre não tomar vinho do Porto, ou qualquer outro aperitivo à noite, embora, à tardinha, tanto eu quanto Ferdinando John já temos apreciado uma cervejinha gelada. Não qualquer cerveja que se bebe por volume, cujos nomes ou marcas não vou aqui declinar, pois nunca se sabe o que nos reserva o amanhã. Mas apreciávamos, sim, uma cerveja artesanal, encorpada, que pode ser degustada. Essa sim deve ser bebida com moderação.

Nos encontramos em um domingo ensolarado, e por isso procuramos uma mesa à sombra. Foi nesse dia que Ferdinando John relembrou de sua primeira Monark. Havíamos caminhado um pouco, discutido muito, e, agora, estávamos com muita disposição ao ócio, a jogar conversa fora, sem dar a mínima importância para o povaréu que aproveitava o primeiro sol da primavera, e como lagartos, ocupavam boa parte da praça à nossa frente.

Antes de continuar, necessito esclarecer sobre os lagartos. Eu entendo pouco de lagartos. Já vi vários, no campo e na campanha, e sei que eles comem os ovos recém postos das galinhas, provocando não grande prejuízo, mas enorme frustação à cozinheira que pretendia usá-los em algum prato para o almoço, especialmente se pensara em fazer ovos fritos. Por isso não são bem vistos. Não os ovos, pois esses continuam apreciados. Mas os lagartos, esses não são bem vistos. Mesmo porque são muito feios. E, para quem não sabe, há um tipo de carne chamada lagarto (que nojo!), no centro do país, que não tem nada a ver com os lagartos (menos mal!). O lagarto é uma carne bovina da parte traseira do animal (poderia se dizer que é da bunda do animal?), conhecida no sul como tatu. Esse tal de tatu nunca caiu no meu gosto. É uma carne seca, sem gosto, que volta e meia é feita recheada com ovos e cenoura. O que é uma desfeita e um desperdício para os ovos. Para a cenoura, nem tanto.

Para finalizar sobre os lagartos, sei ainda que são animais de sangue frio, como as cobras, e que põe ovos. Nesse aspecto assemelham-se às galinhas, embora não se tenha informação de galinhas que comam os ovos dos lagartos. Nem que as cozinheiras façam omeletes com ovos de lagartos.
Pois esses animais reptílicos, dos quais haveria mais de mil espécies catalogadas, gostam de lagartear. Parece óbvio, mas não é isso que interessa. Ao assuntar sobre os lagartos, minha intenção é explicar sobre essa expressão muito usada – lagartear - principalmente no sul do Brasil, que traduz o hábito de ficar sob o sol, aquecendo-se, sem fazer nada de útil, exceto fechar os olhos – quando se está sozinho – ou tomar chimarrão, quando se lagarteia em grupos. Evitarei de falar de outros animais, como os Hamsters, que ao contrário dos lagartos, não gostam de sol, pois assim voltamos ao curso principal da estória.

Relembrando, enquanto a praça estava apinhada de lagartos, Ferdinando John e eu sentamos em uma mesa à sombra, e aguardávamos o garçon, para pedir algum lubrificante para as engrenagens de nossa imaginação. Pedimos os dois, dois Camparis. Um Campari para um, e outro Campari para outro. O meu com bastante gelo e limão. Mais gelo do que limão. Ferdinando John foi mais específico e pediu com cinco pedras de gelo e uma rodela com limão. Considerando o tamanho das pedras de gelo, não precisava se dar ao trabalho de especificar o número de pedras. Bastaria ter pedido, como eu, com bastante gelo. Mas Ferdinando, muitas vezes, gosta de ser exato ao falar.

Trazidos os Camparis, iniciamos um ritual já conhecido e tradicional de quem toma essa deliciosa bebida, que para alguns tem gosto de remédio, embora muito melhor do que remédio seja. De certa maneira, o Campari é um divisor de águas, entre as pessoas que adoram Campari e os que odeiam Campari. Sei até que há no orkut, uma comunidade denominada eu odeio Campari e também outra chamada eu amo Campari. Nem sei por quê falei nesse orkut, pois eu considero isso um lixo, não reciclável, que não vale um gelo do meu Campari. Ferdinando sempre diz para os que não gostam, que, quando crescerem irão apreciar.

Eu, com o dedo indicador, movimentava os gelos, fazendo-os girar no sentido horário. Devagar no início, com vigor ao final. Espero que vocês ainda me entendam quando falo em sentido horário, pois já há parte de uma geração que nunca viu um relógio analógico, e talvez imagine que o tempo não é contínuo. Que passe pulando de segundo em segundo. Ou até de minuto em minuto.
à minha frente, Ferdinando John também mexia seu Campari com o dedo, para gelar mais rápido a bebida. Às vezes parava e pensava na satisfação que aquilo lhe dava, e, como eu, levava o dedo molhado à boca, para limpá-lo e também para saborear um pouco da bebida que umedecia o dedo. Essa é uma das principais razões, senão a principal, que recomenda servir Campari em copos baixos. Pois em copos longos, onde são servidos os long drinks, é mais difícil mexer a bebida com o dedo. Até é possível, mas me parece que não ficaria bem homogêneo, pois o dedo-mexedor não alcança o fundo do copo. A menos que a boca do copo fosse tão grande que permitisse colocar toda a mão dentro. Além disso, em copos baixos, com o dedo totalmente imerso, consegue-se imprimir maior velocidade rotacional à bebida. E, dessa maneira, a friagem que sai do gelo se mistura mais rapidamente em todo o líquido. Assim me parece.

Num dado momento, Ferdinando John olhava seu copo enquanto os gelos rodavam e, claramente, pensava em algo longe, pois quase conversava sozinho. Lá pelas tantas, disse, sem levantar os olhos: “a primeira Monark a gente nunca esquece”. Eu fiquei pensando já ter ouvido aquilo. Mas depois me dei conta que Ferdinando estava fazendo uma grande confusão. Ou melhor, poderia se dizer que seus neurônios estavam em franca atividade sinapsiana. Ao dizer que a primeira Monark a gente nunca esquece, certamente ele usou, de forma inconsciente, as mensagens “o primeiro sutiã a gente nunca esquece” e “não esqueça da minha Caloi”. Justamente a Caloi, concorrente da Monark. Acontece que Ferdinando, e eu também, quando crianças, não conhecíamos bicicletas Caloi, apenas as Monark.

Ferdinando John tinha dessas. Quando menos se esperava, ele vinha com algum assunto aparentemente nada a ver! O que permitia mudar o rumo da conversa e, de certa maneira, torná-la infindável. Mas esse assunto tinha tudo a ver com aquele momento, pois também eu volta e meia pensava sobre isso. Assim como Ferdinando John, eu nunca esqueci de minha primeira Monark. Há detalhes que eu não lembro, mas o mais importante, sim. Era Natal, tinha a idade em que evita-se pensar se Papai Noel existe, pois intui-se que esse pensamento acabaria com o bom velhinho. E, também nessa idade, é útil esperar presentes de Papai Noel.
Pois minha primeira bicicleta era uma Monark, aro 22, azul. Ganhei aos sete anos, sem saber ainda andar de bicicleta. O que não me impediu de sair à rua, conduzindo a bicicleta, a pé.

‘A minha era vermelha, como este Campari’, disse Ferdinando John. Então foi essa a conexão que ele fez para voltar no tempo, até sua primeira Monark.

Assim éramos, eu e Ferdinando. Antes de começar nosso Campari, já viajávamos por todos lugares já vividos, e, após o segundo Campari, visitávamos lugares que nunca tínhamos estado. Em épocas que só conhecemos nos livros. Talvez nunca existidas.

Além disso, após o 2º Campari, os problemas mais intrincados do mundo se resolviam sozinhos. E, se ainda restasse algo ruim, a próxima dose resolveria.

Salut Ferdinando ! Salut Campari !

Nenhum comentário:

Postar um comentário