Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







domingo, 6 de novembro de 2011

ENCONTRO NO CAFÉ MENILMONTANT

Me lembrei do café Menilmontant . Acho que é assim que se escreve, pois nunca vi escrito. Só ouvi falar. Foi assim que aconteceu.
Certa vez encontrei, aqui mesmo, neste portão, creio que nestas cadeiras, embarcando para Paris, um casal de meia idade, que aparentava muito menos que meia idade. Observei que haviam procurado dois lugares contíguos, para juntos estarem, compartilhando desde então a viagem cujo embarque estava próximo. Mas não encontraram. E como havia um lugar vago à minha direita e outro à esquerda, achei por bem oferecer-lhes mudar de assento. Sabe aquela estória de "faz o bem sem olhar a quem"? Pois é!
 Assim eles sentariam juntos, pois eu sozinho estava mesmo. Expressando, de certa forma, exagerado reconhecimento por aquele pequeno gesto, imediatamente começaram a conversar comigo. Quem me conhece sabe que não sou de muitas conversas, principalmente com desconhecidos, mas, talvez, aquele curso de neurolinguística que fiz alguns meses atrás, tenha me ajudado a parecer mais amigável. Apenas parecer.

Eles queriam realizar um sonho. Reencontrar Paris. Melhor dito, reencontrarem-se em Paris, pois foi lá que se conheceram a mais de 10 anos. Na época estavam os dois sozinhos em Paris. Ele a passeio, ela estudando algo que não me recordo agora. Creio que na área de "design".

Era a primeira vez que ele fora a Paris. Apenas ele, mas com muitas dicas, recomendações e leituras sobre a cidade-luz. Pausadamente, relembrando os fatos, olhando para o alto como se procurasse ler e seguir um roteiro, foi me fazendo um relato com muitos detalhes, como se eu conhecessa Paris. Como sou um pouco lento, e não falei nada de imediato, perdi o momento de esclarecer que nunca estivera em Paris. Então, resolvi assumir que eu já tinha estado em Paris. De rápida passagem.

“Acabei me hospedando na região entre a Gare Du Nord e Gare de Lyon. Um pequeno hotel, com três andares, não mais do que vinte quartos. Confortável, sem café da manhã. Embora não fosse muito perto, podia-se ir caminhando até o Sena. Indo diretamente chegar-se-ia na altura da Ile Saint Louis, depois de meia hora de caminhada. Fui uma vez apenas, pois achei que aquela caminhada um pouco longa, logo de manhã, poderia comprometer minha capacidade física de locomoção no decorrer do dia. Além do quê, certamente Paris tinha outros tantos passeios belíssimos.

Durante os dois primeiros dias de minha permanência em Paris, fiz o desjejum - pequeno almoço,como diriam os portugueses -  no café Charbon, na rue Oberkampf, quase esquina com Saint- Maur. Tudo isso foram dicas de um amigo que muito ia a Paris."
Ouvindo aquele relato tão detalhado, tive muita vontade de conhecer Paris. De estudar francês. Juste un peu. Eu estudei quase nada de francês na escola. Lembro apenas dos versos da canção Aline, que o professor nos fez ler, entender e repetir. Creio que cantar também.
E êle continuava seu relato.

Minha mesa preferida
 "O Café Charbon era muito tradicional e já existia a muitos anos. Com decoração rústica, muitos equipamentos antigos de latão, servia um excelente café, tanto no balcão, com bancos altos, como nas simpáticas mesinhas que acomodavam até quatro pessoas. No horário que eu ia, sempre buscava uma mesa protegida sob um tipo de púlpito. É isso mesmo, um púlpito. Prá que era usado, não sei. Com cadeiras de ferro e assento estofado, muito cômodas, eu invariavelmente escolhia a de assento vermelho. Mais para bordô do que para vermelho. O espaldar da cadeira acolhia completamente minhas costas. Muito confortável mesmo.

Ao entrar, marcava território na mesa, com meu guia de Paris, e me aproximava do balcão para pedir um capuccino e um croissant. Tudo “s’il vous plait”, é claro. E depois me acomodava, ali permanecendo quase por meia hora, folhando meu inseparável guia, antecipando trajetos que iria percorrer durante a jornada. E saboreando aquele autêntico ambiente francês. Mais do que francês, parisiense.

Naquele quarteirão existiam muitos cafés. Em frente ao Charbon, o Chez Justine, ao lado deste um café Bistro.

Uma vez jantei lá. No Chez Justine. Não foi bem uma janta.

Eu estava alegre e também ansioso. Pedi pão, queijos e jamon iberico espanhol. Uma água e um vinho. Escolhi uma garrafa de um vinho tinto de uvas grenache com syrah. Era uma safra de cinco anos atrás.

Esse vinho grenache também era uma recomendação que eu trazia na minha bagagem. Seria um vinho com a cara de alguém que me era muito especial, e que tinha a minha cara.

O garçon me ofereceu para provar. Fiz o que limitadamente sei fazer. Observei a cor, translucidez, se molhava a taça, e então provei. Espetacular. Très bonne. Então o garçon me serviu.

Fiquei imaginando se tomaria todo o conteúdo da garrafa e resolvi dividir os 750 ml de vinho em cinco porções imaginárias. Dessa maneira, faria uma quase degustação de cinco vinhos, sem mudar o rótulo. E tentaria reconhecer os sentidos provocados por cada taça, bem como os sentimentos durante cada etapa que pudessem afetar o julgamento do vinho.

Durante a primeira taça, me concentrei no vinho, procurando todo o sabor e buscando o melhor queijo para harmonizá-lo. Ia bem com vários queijos. A cada queijo uma recordação do encontro que tive. Ao final dessa etapa me recostei na cadeira e me senti mais pensativo.

Estando a taça quase vazia passou o garçon que disse qualquer-coisa-em-francês e me serviu novamente. Quando ele deu as costas, coloquei um pouco mais para atingir os 150 ml.

O vinho estava igual à taça anterior. Mas agora eu só pensei naquela mulher que eu conhecera a poucos dias no Café Menilmontant. Lembro bem que meus pensamentos estavam limitados ao primeiro encontro. Ao que conversamos, seus olhos tranqüilos, seu sorriso amigo. Ri comigo mesmo em relação à minha abordagem desastrada, e como ela me ajudou a sair daquela situação.

Aquele presunto espanhol estava ótimo.

Durante a terceira taça, senti o vinho mais doce, macio, amigável, como um velho conhecido. E um sentimento sobre ela tomou conta de mim. Revivia a alegria em em todos os passeios e encontros que já tivemos, como nos entendemos, já com uma pontinha de cumplicidade. Em determinadas situações, nos olhávamos e sorríamos numa sintonia de almas gêmeas.

Desejei que ela estivesse aqui agora, pois o vinho começava a revelar um sentimento apaixonado em mim.

Então, me dei conta que a primeira taça me fez recordar, a segunda me fez pensar, e a terceira me fez sentir. Decidi ir embora. Tampei o vinho com a rolha, e levei-o comigo, para caminhar um pouco e respirar o agradável ar fresco daquela noitinha.

Essa foi a única vez que entrei no Chez Justine. Talvez agora possamos ir novamente, e sentir juntos os efeitos da terceira taça de vinho.

Assim era minha rotina matinal. Ao sair do hotel, caminhar até o Charbon, tomar um café planejando meus passeios por Paris, e depois, a passos lentos, olhar as vitrines próximas e seguir pela rue Oberkampf, por uma quadra e pouco até a Av dela Republique, onde havia a estação de metrô Parmentier.

Fiz isso nas duas primeiras manhãs de minha estada em Paris.

Mas no terceiro dia, depois de ter entrado no Charbon, e encontrado o local cheio de casais, inclusive minha tradicional mesa e também a cadeira de estofado vermelho-bordô ocupadas, resolvi seguir adiante.

Ao invés de caminhar no fluxo contrário aos carros, como sempre fazia, optei por ir para o outro sentido da rue Oberkampf, pois com certeza não faltariam cafés e buracos de estação de Metro. Pois é isso que Paris mais tem. Também cachorros. De todas as marcas.

Era um sábado, final de abril, primavera de um céu absolutamente límpido. Nesta hora a temperatura seria uns dezoito graus, mas durante o dia poderia passar dos vinte e cinco.

Caminhei lentamente por aquela parte da rua que não conhecia, admirando algumas floreiras nas janelas dos pavimentos superiores daqueles muitos prédios antigos. Quase todos de três andares mais o térreo.

Parei sob um grande outdoor, todo branco em que estava escrito “ j'aurais prefere un mur blanc que cette affiche de merde.” Quando se está tendo os primeiros contatos com a língua, os anúncios e propagandas são excelentes oportunidades de aprendizado. Não entendi literalmente a mensagem, mas compreendi a idéia. Eu também prefiro paredes brancas a qualquer cartaz de merda.

Em ambos os lados da rue Oberkampf havia comércio, e naquela altura da manhã, em torno de dez horas, notava-se que as pessoas começavam a deixar suas casas para aproveitar o sábado. Eu caminhava pela calçada da direita, mas volta e meia atravessava para ver alguma vitrine do outro lado. Sempre muito atento aos carros, pois apesar de ser uma rua estreita e com muitos protetores de ferro no fio da calçada, achava que os autos passavam demasiadamente velozes. E, a última coisa que eu desejaria, era ser atropelado no exterior.

Assim caminhando, após duas-três quadras cheguei num local muito agradável, em que havia uma pequena rotatória no encontro de quatro ruas. Boulevard Menilmontat, Rue Menilmontant, Rue Oberkampf e Boulevard de Belleville.

Tirando a visão de um Mc Donalds, na esquina esquerda da rue Oberkampf, tudo me era novo e simpático.

E decidi então mudar meu café matinal para aquele lugar amplo, bonito e acolhedor, onde eu poderia observar muito mais movimento de pessoas e carros.

Café Menilmontant à noite.
 Escolhi o café Menilmontant, na parte externa, de rua, bem mais agradável naquele dia. Estava bastante movimentado e não havia mesa livre. Um casal com um cachorro, que chegou instantes antes de mim, pegou a última.

Resolvi aguardar um pouco, mas meu coração me fez olhar na direção de uma mesa em que uma mulher, morena, tranqüila, da minha idade, tomava um café e lia um guia de Paris, em português.

Você não faz idéia de como sou tímido e lento em situações não programadas, mas algo me empurrou na direção dela, dei bom dia, ela me respondeu com outro bom dia, e perguntei idiotamente ‘seu coração está livre?’. Depois que disse aquilo, queria me esconder, me passar por francês.’ Excusez-moi madame. Je suis brésilien. Juste pensé à haute voix.’

Ela sorriu ante aquele inesperado. Perguntou se eu sempre pensava em voz alta.

Eu ainda falei de seu olhar, que me parecera triste, mas não, era um olhar sereno, acolhedor. Eu é que tenho um olhar triste. Triste como deve ser o olhar da saudade. Eu não tinha saudade. Mas sabia que ainda teria. Tudo isso eu falei nos primeiros instantes de nosso encontro.

E foi assim que nos conhecemos.”


Agora eles embarcariam novamente para Paris. Para conhecer novos lugares e se reconhecerem nos antigos lugares.

Naquele momento, quase sem me reconhecer, me questionei de continuar naquele saguão de embarque, fazendo anotações, para um trabalho que poderia dar em nada.

Me recostei na cadeira, fechei os olhos e pensei em Paris.

Nota: este conto foi um exercício de escrever tendo como cenário um local em que nunca estive.

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