Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







terça-feira, 1 de maio de 2012

XAMPUS NUNCA ESTÃO SÓS

João Baptista dos Santos Lima. Esse era seu nome. Eu o chamava de Seu Baptista, sem pronunciar o “p”, pois me explicara que aquele “p” era um “p” mudo. Sempre o tratei com muita cerimônia. Primeiro porque usava invariavelmente gravata. Da mesma cor do terno. Azul marinho. Ou azul noite, talvez, pois era um azul muito escuro. Não seria exagero dizer azul marinho noite. E o nó da gravata era bem cheio, com muitas voltas e laços, exigindo um colarinho largo. Formava um triângulo isósceles perfeito, com a parte superior bem maior do que os lados propriamente ditos. Mais tarde vim saber que o nome desse nó era - e ainda é - Windsor, ou Duque de Windsor. Teria sido inventado por Eduardo VIII, que reinou por um curto período em 1936. Um reinado relâmpago. Recentemente desempenhou seu próprio papel no “Discurso do Rei”, muito bom filme, recomendo. Ao final, abdicou por uma mulher. Romantismo ou tolice. Quem sabe?
À primeira vista, Seu Baptista parecia muito próximo da aristocracia britânica. Já eu, usando chinelos tipo havaianas e bermudas, sempre que o clima permitia, tentava me identificar com a idéia de uma pessoa comum, para passar sem ser notado.

Além da gravata, que por si só já exigia um tratamento mais formal, havia a questão da idade. Não só a idade cronológica, pois certamente Seu Baptista era mais velho do que eu. Mas, principalmente a idade biológica, que se revela pela aparência e pelo real estado geral da pessoa. Nesse tipo de idade, Seu Baptista parecia muito mais velho do que eu, e, consequentemente, eu bem mais novo do que ele. E ainda existia a questão da postura. Havia nele uma altivez, talvez vaidade, quase empáfia, que combinava – ou contrastava, não sei – com um comportamento de rejeição ao mundo atual, quase um estancamento à fluidez de sua vida. Tudo isso, eu pensava, coerente com aquele “p” de Baptista.

Às vezes, além do terno com gravata, Seu Baptista usava um lencinho branco na lapela. Sempre combinando com suas camisas. Brancas. Muito brancas. Inexplicavelmente brancas. Quando estava assim trajado, saltava aos olhos de quem o visse, primeiro o tal lencinho branco na lapela, e, imediatamente, o brilho de seus sapatos pretos. De bicos finos e solado de couro, em dias nublados pareciam refletir o céu. Talvez ele mesmo engraxasse seus sapatos. Ou a mesma senhora que vinha duas vezes por semana para limpar e cuidar de suas coisas.

Seu Batista tinha um caminhar ereto e calmo, mas, de certa maneira, não parecia um andar natural. Como se o caminhar não fosse um movimento para ir de um lugar à outro, mas sim, um fim em si mesmo. Nunca apurava o passo. Nem tinha pressa. Como se estivesse numa passarela. Planejando, a cada passo, como dar o seguinte. E talvez o próximo. Quase evidenciava estar representando, caminhando sobre um palco de teatro, um caminhar que não era verdadeiramente seu. Assim, me parecia.

Cumprimentava a todos, conhecidos e desconhecidos. Quando não o viam, fazia questão de arrastar o pé, de alguma maneira que fizesse barulho, ou então pigarrear tantas vezes quando necessário. Dessa forma, se fazia percebido e saudava cada pessoa, como se amigos de longa data fossem.

A primeira vez que nos encontramos foi no elevador de meu prédio, agora nosso prédio. Isso aconteceu no próprio dia da mudança de Seu Batista. Lembro que era 3º feira, creio que após o domingo de Páscoa. Por alguma razão, eu, que não sou de desperdiçar cumprimentos, disse “Bom dia, vizinho! Seja bem-vindo!”. Pois Seu Batista parou, e com muita formalidade retribuiu o bom dia, mas emendou imediatamente um “Qual é a sua graça?”. Confesso que fiquei meio sem graça, pois a primeira vez que alguém me perguntou o nome dessa maneira, não entendi. E teria ficado paralisado, esperando por alguma pista. Mas agora, com Seu Baptista, a pergunta não me era desconhecida. E lhe disse meu nome rapidamente. Creio que nem ouviu, pois já se apresentava dizendo que se chamava João Baptista dos Santos Lima, mas que todos o tratavam por Baptista, com “p” mudo. Fiquei com a sensação que era daquele tipo de pessoa que não ouve respostas. Suas perguntas visavam a apenas abrir espaço para seus assuntos e suas próprias respostas. De qualquer maneira, muito prazer, seja bem-vindo, até logo. Assim foi o primeiro encontro.

Naquela terça-feira eu saía para o trabalho, após um café com leite muito rápido para não perder o ônibus das 7h46, e, após a inesperada apresentação, cruzei a entrada do prédio – naquele momento, para mim, era a saída - e vi um caminhão antigo, de médio para pequeno porte estacionado em frente à entrada das garagens. Não lembro exatamente o nome da empresa de mudanças. Talvez fosse “Rápido Mudanças”? Era um caminhão Ford F-600, da década de 60. O modelo e a década eram coincidência. Não existiu um F-700 na década de 70, nem um F-800 na década de 80. Muito menos um F-900 na década de 90. Mas existiu, sim, uma camioneta Ford F-100. Meu avô tinha uma. Amarela. E foi nela que aprendi a dirigir, por corredores e estradas estreitas, irregulares, às vezes barrentas, da campanha gaúcha. Por muito tempo, foi a camioneta mais fascinante que conheci.

O Ford F-600, daquela empresa de mudanças, tinha a carroceria fechada, como um baú. Daí que se diz caminhão baú. Alguém me explicou que a vantagem dos caminhões baús é que protegem perfeitamente suas cargas, que são transportadas quase que hermeticamente fechadas dentro da carroceria. Protegidas de pó, chuva, e até roubo. Por outro lado, sempre ouvi dizer que tais caminhões-baú sofrem muito quando estão vazios e passam por zonas de ventos fortes. Podem até virar com o vento. Eu nunca vi um caminhão baú virado por causa de vento forte. Mas tem tanta coisa que eu não vi!

De qualquer maneira, parece que dentro da cidade não há esse perigo de ventanias, e o caminhão da Rápido Mudanças, com os pertences de Seu Baptista lá estava, cedinho da manhã, intacto.

Além do motorista, que descansava com o rádio ligado dentro da cabine, havia uns dois ou três homens que pacientemente esperavam para iniciar o descarregamento dos móveis, aparelhos, e demais pertences de seu Baptista. Talvez aguardassem a presença do referido senhor, que fora até o apartamento para uma última vistoria antes de ocupá-lo. Ou poderiam estar à espera da autorização do síndico para iniciar a descarga, pois certamente demandaria o uso dos elevadores. E naquele horário as pessoas necessitavam usar o elevador para irem aos seus trabalhos. Talvez já acostumados com essas esperas, os ajudantes da mudança conversavam tranquilos, aguardando apenas a liberação de algum responsável.

Com as portas da carroceria aberta, era possível ver que teriam muito trabalho. A carga parecia muito bem arrumada e ocupava praticamente todo o volume do baú. Por certo, os primeiros móveis a serem descarregados seriam a mesa e as cadeiras da sala de jantar. De madeira escura e rústica, eram visualmente bastante pesados e teriam sido os últimos móveis que foram carregados. Agora, seriam os primeiros.

Não fiquei sabendo como a coisa toda evoluiu, pois era minha hora, e continuei a caminhar ligeirinho, andando sempre longe do meio fio, bem rente aos muros e prédios.

Esse costume de caminhar junto às casas já me valeu alguns sustos. Uma vez, distraído,- ou seria concentrado? -, ao colocar o pé direito para atravessar uma saída de garagem, tive um enorme sobressalto devido a um carro que avançava com o motor acelerado, embora a baixa velocidade. Apesar da descarga de adrenalina, que efetivamente acelerou meu coração, não senti nenhum efeito sobre a atividade muscular, nem a suposta elevação da capacidade de reação do corpo em face à um susto. Sem esses sintomas que a adrenalina provoca, fiquei paralisado mesmo. Creio que até o motorista se deu conta, tanto quanto eu. Após sinalizar desculpas e não foi nada, segui adiante, pensando que deveria ter explicado para ter mais cautela, avançando o carro lentamente com o motor em baixa rotação, evitando sustos, principalmente nos cardíacos. Pois foi o barulho que me assustou. Mas só pensei, pois já estava na quadra seguinte.

Tive outros casos dessa natureza, mas continuei caminhando sempre o mais afastado possível do cordão da calçada. Quase junto às paredes. Não me perguntem os porquês.

Quanto ao Seu Baptista, volta e meia o encontrava, normalmente em horários em que eu chegava do trabalho. Sempre com muitos cumprimentos, salamaleques e recomendações à sua senhora. À minha senhora, pois ele vivia só. Quando nos afastávamos eu pensava que havia algo estranho no Seu Baptista. Era como se eu já o conhecesse, ou pelo menos já o tivesse visto muitas outras vezes, em outros lugares.

Descobri que ele não gostava de xampus. Melhor dizendo, Se Baptista não gostava de comprar xampus. Pelo mesmo motivo, que descobri mais tarde, também tinha restrição aos sabonetes. Então usava sabão em barra para lavar os cabelos. Como muita gente usa. Pois, o xampu foi desenvolvido como um detergente mais suave para os cabelos. Em épocas de sabonetes brutos. Talvez muito alcalinos. Hoje os sabonetes e mesmo os sabões em barra glicerinados podem ser tão suaves como os xampus. Ou quase. Alguns sabonetes são suaves demais, e se desmancham na água do chuveiro antes da gente começar a esfregação. Porisso, o sabão era melhor. Pelo menos para Seu Baptista.

Fiquei sabendo disso porque uma ocasião eu estava em frente à prateleira de xampus, no supermercado, procurando, ou escolhendo qual seria o melhor para meu tipo de cabelo, quando alguém me deu uns tapinhas nas costas e disse “os xampus nunca estão sós, heim? Mais fácil é comprar alfaces”. Quando me virei, Seu Batista já se afastava, me fazendo um discreto aceno, com ares de experiência no assunto. E, naquele momento, me pareceu que seu caminhar estava mais para um cowboy americano que para um lorde inglês. Era isso! Aquele caminhar aristocrático era falso. Era uma representação. Seu caminhar autêntico era de um vaqueiro. Como eu vi em muitos filmes.

Quanto à estória dos xampus que nunca estão sós, me interessei em descobrir o que significava.

Não foi difícil encontrar o significado, mesmo sem perguntar diretamente à Seu Batista. De certa maneira, isso é conhecido nosso. Apenas não dito dessa maneira, “xampus nunca estão sós”.

É certo que Seu Batista se referia à dificuldade de comprar xampus, pela enorme variedade de tipos e de marcas existentes numa prateleira de supermercado. Enquanto para comprar alface, basta pegar alguma que não esteja murcha, para escolher um xampu é quase um inferno.

Tem xampu alisante, recomendados para cabelos volumosos e ressecados, xampu hidratante, que contem um pouco de óleo em sua fórmula, xampu contra queda de cabelos, anticaspa, com condicionador, com tonalisante, com antioxidante, com protetor solar, sem sal, infantil, para cabelos normais, para cabelos lisos, para cabelos de tudo o que é jeito.

Isso me faz lembrar o Bubba, grande amigo de Forrest Gump, enumerando um sem fim de receitas de camarão.

Por essa razão Seu Baptista disse que os xampus nunca estão sós. Como os vinhos, eu pensei. Embora seja prazeroso escolher um vinho, enquanto escolher um xampu é um porre.

Apesar de tudo isso, diferentemente de Seu Baptista, eu não me ensaboava com sabão em barra.

Eu tinha a impressão que aquele cowboy, disfarçado de lorde, desde sempre usara sabão em barra, como num filme muito antigo de faroeste que vi, em que o “mocinho” - absolutamente empoeirado - tomava banho numa tina e se esfregava muito com sabão. Mas ao final, funcionava, pois o cara saia limpinho.


De forma inconsciente e gradativa fui associando a figura de Seu Baptista à de John Wayne, pois estava seguro que se um vivesse na época do outro, cada um seria o outro. Às vezes eu imaginava o John Wayne com as roupas de Seu Baptista, incluindo o lenço na lapela. Outras vezes era o contrário, Seu Baptista é que chegava em casa à cavalo.

Cada vez mais cowboy, Seu Baptista caminhava com as pernas mais arqueadas do que quando se mudou para o prédio, usava também interjeições mais simples e diretas, que não lembravam todo o formalismo e o excesso de polidez de sua chegada. Uma vez, tive a impressão que ele me chamara por cowboy. Fiquei na dúvida se tinha ouvido isso ou algo muito parecido. Me virei, à procura daquela voz, e recebi um sonoro bom dia, vizinho.

Mas a coisa não parou por aí. Noutra ocasião, navegando com o controle nos canais da TV paga, passei pelo “Cult”, que basicamente mostra filmes clássicos, e, por serem clássicos tendem a ser antigos, e lá estava Seu Baptista, quero dizer, John Wayne, em “Rastros de Ódio”. Ou seria “Rastros de Vingança”. Sei lá. Dá no mesmo. Embora eu soubesse que no filme era John Wayne, eu enxergava Seu Baptista, principalmente quando andava a cavalo.

Já de muito tempo eu pensava que não se deve excluir a possibilidade de existirem duas pessoas iguais. Tanto contemporâneas, mas, com menos razão, também em distintas épocas. Da mesma forma não afasto, embora bastante inverossímil, aquela estória da mesma pessoa viver simultaneamente em mais de um tempo. Ou seja, além de um tempo fluir simultaneamente à outro, alguém vive paralelamente nessas duas épocas. Lembram de “Em algum lugar do passado”? Só para não exagerar com “De volta para o futuro”, em que aqueles dois malucos ficavam pulando de época em época.

Seu Baptista morou no prédio durante 3 ou 4 anos, e um dia, sem aviso prévio, um caminhão de mudanças, também do tipo baú, estava carregando suas coisas.

O encontrei, controlando e orientando o que carregar primeiro, o que carregar depois, os cuidados com esta caixa e a outra. Aquela é pesada, a grande está leve. Essa tem cristais, deixem a mala para o final. Cuidado que a prateleira vai bater em cima. Protejam o espelho. E assim por diante.

Me aproximei, cumprimentei Seu Batista, e ele logo me explicou que ia de muda para o interior. Com muito contentamento, disse que voltava à sua cidade, onde morava seu filho. E também tinha primos. Em poucos minutos relatou que viera morar em nosso prédio quando ficara só. Embora natural, mesmo na idade plena – assim Seu Batista qualificou sua idade –, nunca se está preparado para suportar certas perdas e seguir em frente. No início desânimo, depressão, melancolia, fixação no passado. E junto, dores, médicos, exames, remédios, formando um círculo vicioso.

Por sorte conseguiu elaborar as perdas que já tivera, buscou e encontrou novos significados para sua vida. E que, de agora em diante – palavras textuais -, voltaria a ser como os xampus, que nunca estão sós. Que o período passado nesta morada foi fundamental para sua vida. E declarou, ainda, que lembrava de nosso primeiro encontro e minha recepção no dia de sua chegada, e aquilo fora, senão uma injeção, ao menos uma pílula de ânimo e esperança. Eu pouco dizia, pois surpreso estava. E, para culminar, tocou um celular, que não era meu. Pois não é que Seu Baptista levou ràpidamente a mão ao bolso e sacou um telefone celular. Logo ele que não se entendia nem com o controle remoto da garagem. Belas mudanças. “– Alô ! É ele. Tudo bem. Já carregamos tudo. Ok, te espero”.

Conversamos quase nada mais. Havia no ar uma empatia nunca antes declarada ou exercida, e, agora, talvez, uma antecipada melancolia. Assim, durante o último aperto de mão, não resisti e perguntei: “Seu Batista, sabe o John Wayn ..?” Antes de terminar a indagação ele já me interrompia, colocando o indicador nos lábios, o clássico gesto de pedir silêncio e disse, assim, de chofre, me pegando totalmente desprevenido: “Sim, era eu, mas guarde para si. Foi uma honra tê-lo conhecido, cowboy.”

E pronto. Ele virou as costas e se afastou, recapitulando as orientações já dadas aos ajudantes da mudança que agora completavam a carga do caminhão.

Eu segui em frente, andando sempre afastado do cordão da calçada. E nunca mais ouvi falar de Seu Baptista, John Wayne, ou seja lá quem fosse esse, ao final, simpático senhor.

Passados mais de cinco anos, me lembrei dessa estória. Jamais havia contado a alguém. No início ficara muito impressionado, pois não conseguia dar sentido àquilo. Com o passar da vida aprendi, e aceitei, que não é necessário dar sentido à tudo. Nem seria possível.

Pelo que ficou desses acontecimentos, hoje sinto gratidão aos dois. À John Wayne e à Seu Baptista, este com “p” mudo, por terem me proporcionado essas fantasias.

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