Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







domingo, 29 de setembro de 2013

QUANDO ACORDEI, O DINOSSAURO AINDA ESTAVA LÁ.

 


Nunca tive atração por dinossauros. Nem os percebia como animais simpáticos ou merecedores de minha atenção. E se aparecesse algum na minha frente, não o levaria por compadre.  Não que estivesse a ponto de odiá-los, pois, sem conhecê-los minimamente, me sentia incapaz desse mau sentimento. Falando francamente, a coisa se resumia na falta de interesse mesmo, pois esses dinossauros não tiveram nenhum papel em meu mundo real ou imaginário.

E, quando meu filho dizia, transparecendo uma pontinha de mágoa, por minha insensibilidade, que “papai não gosta dos dinos”, eu tentava em vão explicar que não era bem assim. Afirmava, de uma forma bem neutra, que não era o caso de gostar ou não gostar. Mas, sim, que eles não existiam, o que ajudava em nada minha situação, pois aguçava sua tristeza por eu não participar de sua fantasia. E, então, eu atenuava, contando a ele que na minha infância não se falava nesses animais. Que não se tinha contato com dinossauros, tiranossauros, braquiossauros e outros tantos sauros que passaram a ser tão conhecidos de alguns anos para cá. E, talvez para implicar, eu dizia broncossauros, ao que ele me corrigia imediatamente “brontossauros, papai”. Marta, minha mulher, não deixava passar a oportunidade e lhe dizia baixinho, de um jeito que eu ouvisse, que ela conhecia um broncossauro. Embora eu saísse um pouco chamuscado daquela conversa, me alegrava a cumplicidade e a alegria deles, e o melhor é que o assunto ficava superado.

De fato, quando criança, eu brincava com soldadinhos, índios, mocinhos, com seus cavalos e fortes, colecionava figurinhas, primeiro da branca de neve, bela adormecida, e depois de copas do mundo. Mas nada de dinossauros, ou quaisquer outros imaginados répteis, que após incertos milhões de anos voltaram apenas para azucrinar minha paciência de pai.

Mas a questão é que voltaram e, pouco a pouco, foram ocupando lugar no quarto do Pedro e, depois de tomarem conta de toda uma prateleira, desceram para outra, e mais outra, até ocuparem toda a estante de brinquedos. E como se isso não bastasse, esses animais começaram a se esparramar em nossa sala de estar. Estavam em livros infantis, para ler ou colorir, e também em figurinhas de colar, e, depois, eram bichossaurinhos plásticos e de borracha, de tudo que é tamanho e cor. E, como um pesadelo que não acaba, em pouco tempo vieram os filmes sobre dinossauros.

Não tínhamos ainda DVD player, era tempo de videocassete. Um dia, mais precisamente em uma tarde de sexta-feira, Marta chegou em casa com “Dinossauro”, filme da Disney, dublado por Malu Mader e outros que não lembro mais. Eu recordo muito bem desse fato porque passava na TV a mini série “Anos dourados”, com essa mesma artista, e eu dizia que  ela saía correndo dessa séria para fazer a voz da dinossaura do filme.

Nessa primeira vez que o filme esteve lá em casa, foi assistido mais de sete vezes em um fim de semana. E era filme de hora e meia, o que resulta em dez horas e meia de ação, além das paradas para aprontar as pipocas, beber água e ir ao banheiro. Naquele sábado abri mão até de ver o futebol na TV. Mas não fiquei em casa. Fui para um bar, assistir o jogo com os amigos.

Depois disso, incontáveis vezes o bicho voltou. Pedro via sozinho, com os primos, coleguinhas de escola, com quem estivesse à mão. E aqueles animais começaram a ser reproduzidos em seus cadernos de desenho, também em outros cadernos que não eram de desenho. Mas, o mais marcante, é que invadiram e se instalaram principalmente entre a imaginação e preocupações de Pedro. “Será que os dinos gostam da comida da mamãe?”, “O dinossauro quer pipoca, mamãe”, “Papai, tinha dinossauro no teu tempo?”, “O dinossauro ainda não quer deitar”.... e assim por diante.

Algum tempo após esse primeiro filme, Pedro voltou da escola contando que havia um filme chamado Parque dos Dinossauros, com dinossauros de verdade, pois aqueles que conhecia até então não eram verdadeiros. Maldito Jurassik Park e seus inventores. Eu já havia visto no cinema, quando foi lançado no final dos anos 90, e prometi nunca mais assistir um filme sobre animais pré-históricos. Mas o destino preferiu brincar na turma de meu filho.

A partir desse filme, os dinossauros e seus agregados deixaram de ser animais bonzinhos. Agora eram ferozes, travavam lutas infindáveis entre si, em que o derrotado parecia ser sempre eu. Às vezes eu lia quieto sob o abajur, e, de repente, um desses animais me atacava no pescoço. E Pedro ria ao dizer “olha o dinossssauro no cangote do papai !”

Marta me aconselhava a gostar, ou, no mínimo, dizer que gostava de dinossauros, senão eles viriam me assustar à noite, além do que eu seria uma presa fácil para a “maldição dos dinossauros”. Eles se entreolhavam e riam como só os bobos riem. Mas eu sabia de qual bobo eles estavam caçoando.

A maldição dos dinossauros, conforme Marta, seria que eles nunca me deixariam em paz. E de fato, volta e meia, primeiro ela, depois também o Pedro, não cansavam de dizer “é a maldição dos dinossaaaauros!”. Se aplicava a tudo a tal maldição. A chave que eu não achava, o copo que quebrava, o gás do chuveiro que faltava, a lâmpada que queimava, tudo, absolutamente tudo, tinha a ver com a cruel “maldição dos dinossaaaauros”. Até as derrotas de meu time eram devidas à essa bizarrice.

E, num dia, aconteceu de fato um episódio inusitado, como uma praga rogada, que ainda hoje tenho dúvidas se não foi mesmo coisa dos dinossauros.

Durante um feriado longo de Páscoa, viajamos por quatro dias. Ufa, livre dos dinossauros, apenas coelhinhos da Páscoa. Tudo correu maravilhosamente bem, e eu também ganhei um ninho de Páscoa bem grande, com bombons de cereja (meus preferidos) chocolate meio amargo, garrafinhas de chocolate com licor, balas de goma (que eu adorava), e outras guloseimas. Mas, e infelizmente havia um “mas”, escondido na cesta fora colocado – provavelmente pela coelha grande - um dinossauro de chocolate. Não tinha marca, nem sinal algum de fabricação industrial. Parecia ter sido feito em casa. Endereçado para mim. Tive vontade de devorá-lo assim que encontrei meu ninho, que estava escondida no forno do fogão. Eu fui o último a encontrar, pois o Pedro já havia encontrado a cesta dele. Mas não estava tão escondida quanto a minha, pois eu esperava receber uma cesta de Páscoa maior que o compartimento do forno de um fogão a gás. A procura do ninho da Marta não conta, pois ela mesmo havia escondido a sua cesta, e, a par disso, tinha excelente memória. Então, não teve dificuldades em encontrá-la.

Eu lembro que, quando me preparava para devorar aquele dinolate (ou chocossauro, sei lá) os dois gritaram em uníssono. “Nãããão ! Cuidado com a maldição dos dinossssauros!” E se puseram a rir como se aquilo fosse a coisa mais gozada do mundo. Talvez, para eles, fosse. Então deixei de lado aquele maldito Dino e me atraquei em dois bombons de cereja. Comi sem olhar para eles.

O restante do feriadão foi ótimo. Andamos de bicicleta, jogamos bola, e também cartas. Eu gostava de jogar rouba-monte, mas Pedro achava muito infantil. Canastra ele gostava, mas eu achava que era jogo de adulto. Naquele final de semana até pinhão e pipoca teve. Salgadas e doces. As pipocas.

No domingo à noite voltamos para casa, cansados, mas de lazer cumprido. Tudo perfeito, exceto pela TV, que havia sido esquecida ligada, e, para nossa surpresa, estava com uma imagem congelada de um dinossauro comendo folhas de árvore. Não foi difícil descobrir que o videocassete também ficara em funcionamento, e, sabe-se lá em que momento, trancou a fita naquela imagem. Deve ter ficado os quatro dias assim, apesar de Pedro garantir que tinha desligado tudo.

Imaginava eu que, ao apagar a TV, aquela imagem desapareceria. “Desliga que o Dino vai embora”, dissera meu filho, seis anos, o grande responsável por aquela imagem congelada, de um dinossauro de perfil ocupando o centro da tela.

Devo dizer que até esse momento, eu realmente não tinha noção, nem imaginava o que estava por vir.

Então, desliguei a TV e o que se viu agora era a mesma imagem, só que sombreada, na tela da TV. A projeção daquele ridículo dinossauro, e da árvore também, era perfeita.

Marta chamou Pedro para escovar os dentes e ir deitar. Creio que, pelo canto do olho, viu aquele vulto de dinossauro, mas evitou comentar.

Numa providência que pensei ser definitiva, tirei o fio da tomada e ainda resmunguei “chega de dinossauros por hoje”. Apaguei as luzes da sala e fomos todos deitar.

Mas, no dia seguinte, segunda-feira, quando acordei, o dinossauro ainda estava lá.

Não comentei com ninguém, deixando que, em algum momento, eles mesmos descobrissem o bicho e tivessem suas chateações  sobre aquilo, sem ampliar as minhas. Então, desempenhamos nossa rotina matinal de preparação da mesa do café. Enquanto Marta acordava Pedro, ajudando-o a se vestir, eu, na cozinha, aquecia o leite, cortava o mamão, torrava algumas fatias de pão, e punha a mesa, com uma bandeja de geleias, margarina, queijo, etc.

Em quarenta minutos estávamos todos prontos para sair de casa rumo aos nossos afazeres externos. Marta e eu trabalhávamos, e Pedro ia à escola.

Saímos sem ninguém mais ter notado aquele dinossauro imobilizado na tela da TV. Somente à noite, por terem voltado para casa muito antes do que eu, trouxeram o assunto. E eu, tendo deixado parte de meu aborrecimento na rua, minimizei o fato. Apenas disse “depois dou uma olhada.”

Mas, ainda assim, aproveitei o episódio para deixar a TV desligada por dois inteiros dias, pois dessa maneira talvez o dinossauro fosse embora. E somente na quarta-feira a levei na assistência técnica. Pela primeira vez em dez anos de bom funcionamento.

Expliquei o problema, imaginando que com algum pequeno ajuste tudo se resolveria, ou talvez até o defeito tivesse sido solucionado no transporte, pelo simples chacoalhar dentro do carro. Mas, infelizmente, isso não aconteceu.

Segundo a assistência técnica, o aparecimento de “fantasmas” na imagem ocorria em muitos tubos de raios catódicos (assim era o nome daqueles tubo de imagens anteriores às telas de cristal líquido), e a principal causa seria o congelamento de imagem por muito tempo. Como eu não tinha “entendido bem”, o técnico repetiu e explicou que a imagem daquelas TVs, são produzidas por um feixe de raios (os tais raios catódicos) que batem na tela, e, às vezes (ele repetiu esse “às vezes”), pode ocorrer que se a tela fica exposta por muito tempo a uma mesma imagem, isso pode gastar não-me-lembro-o-que e poderia deixar uma sombra definitiva, como que marcada a ferro, visível tanto com o aparelho ligado como desligado. Para tirar o dinossauro daí, só trocando o tubo, mas não valeria a pena, sairia pelo preço de uma TV nova, e agora tem as TV’s de cristal líquido, ponderávamos o técnico e eu.

Foi isso que aconteceu. Voltei com o aparelho de TV para seu lugar na sala, e, a partir daí, a sombra do dinossauro sempre estava lá. Noite e dia, ligada ou não.

Quando eu assistia futebol, minha mulher perguntava “o Dino já fez gol?”. Mas quando eu vibrava com o gol, ela vinha correndo e perguntava “gol de quem”. E eu, quase automaticamente respondia “do Dino”. Com o rabo. O Dino virou personagens de todas as novelas, apresentador de noticiários, comentarista e cantor, mas não participou mais de seus próprios filmes, pois Pedro já não queria ver os filmes de dinossauros.

O fato é que nos acostumamos com aquilo, pois sabíamos que um dia aquela TV iria embora, e, então, veríamos outros programas, quiçá sem saudades daquela sombra de dinossauro. 

Este produção visava atender um desafio de escrever um conto que contivesse o mini texto "quando acordei o dinossauro ainda estava lá".


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