Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







quarta-feira, 30 de março de 2016

NUNCA MAIS!



      


Ivo, Ivan, Nildo, Ildo, também Vanildo. Já se chamara por todos esses nomes, e alguns outros apelidos. Nunca repetia, para evitar conexões indesejadas. Se mudara cinco vezes de casa e três de cidade, sempre fugindo de algo, sempre à procura de algo.
O fato é que Ivanildo ­— assim estava na certidão de nascimento — tinha problemas, não apenas com o nome, mas consigo mesmo. Primeiro e único filho de pais solteiros de baixa renda, perdeu sua primeira infância ouvindo os gritos da mãe enquanto apanhava de forma brutal e cruel, e xingada repetidamente pelas dificuldades da vida. Nunca assistira, pois seu pai — preocupado com ele — o levava para o banheiro com alguns brinquedos. Via apenas as marcas nos dias seguintes, eventualmente o nariz da mãe ainda sangrando.

Amou seus pais tanto quanto pode, tão bons que eram para ele. Numa idade de onipotência, sentia-se culpado por todos os sofrimentos da mãe e também os a brabeza rompante do pai, sempre tão carinhoso.
Aos seis anos recolheu-se em seu mundo de dentro e só retornou dois anos após, com silêncio e dor.
Na escola — um dos mais fortes da classe — aprendeu a agredir e bater, era algo incontrolável que explodia em seu peito para depois se transformar em paz sem culpa. Com o tempo canalizou suas energias para as lutas marciais.
Sua primeira namorada, conheceu sua mão pesada, a irrascibilidade, o descontrole, apenas uma vez. Ameaçado de denúncia, ele deixou o bairro, mudou-se para outro extremo da cidade. Ao invés de Ivanildo, dizia-se Ivo, e empregou-se de segurança em uma academia de ginástica. De corpo bem delineado, cuidava com esmero da aparência, com camisetas que valorizavam seu avantajado tórax e os braços musculosos, barba sempre aparada, cabelos curtos com gel, e o que mais fosse necessário para atenuar uma pontinha de crueldade que seu rosto delicado escondia. De perfil, notava-se orelhas gastas pelo tatame. Também por isso não tirava os óculos escuros.
Numa noite de chuva, ao acompanhar a dona da academia até o carro, seus braços nus se roçaram. Ele sentiu a pele macia e carente. Ela sentiu a pele viril e jovem. No apartamento dela, a noite teve música, dança, bebida, sexo e violência. Por medo, ele desapareceu sem buscar o último salário. Por vergonha, ela enterrou o que se passara, e retornou ao trabalho quando as marcas no corpo se ausentaram.
Ele continuou fugindo, perseguido por seu ciclo culpa e violência, mudando de identidade. Fazia musculação e lutava em academias que não lhe pedissem documento.
Aos vinte e oito anos voltou para a mãe. Reassumiu-se Ivanildo e conseguiu trabalho em uma lanchonete. Seus cachorros quentes eram apreciados, — o cachorro do Ivo —.
Conheceu — e viveu — tempos de paz. Matriculou-se em um treinamento de vendas. Um mínimo de conhecimento teórico e um freio em sua eloquência logo impulsionaram boas avaliações.
No curso conheceu Rosa, encerrada em seu mundo interior. Educada e meiga ao falar, pouco participava. Constrangia-se de ser observada, e, de vendas, desejava mais que tudo comprar-se. Carregava um desvalor pesado e dolorido, que a aprisionava. Sempre com cabelos soltos, rosto lavado, usava um discreto e pequeno par de brincos de pérolas, harmoniosos na simplicidade.
Sentiram afinidade, Ivanildo e Rosa, durante um exercício simulado. Ela compraria uma carne e ele seria o vendedor. Vendo sua indecisão, não se conteve e precipitou-se explicando que a melhor carne para o churrasco ou forno era o vazio. E deu uma verdadeira aula sobre cada carne, quando usar uma ou outra. Ao final perceberam que tinham fugido do exercício e acharam graça.
Nesse dia, Ivanildo deu carona para Rosa. E se aproximaram, também da família dela. Ele sempre expansivo e de óculos escuros, ela sempre contida, sem maquiagem. Gostava de sua simplicidade e recato, queria que fosse a mãe de seus filhos. Ela, de sua determinação, e também que não fumasse.
Pressionada por ele — Rosa achava cedo — tiveram o primeiro momento íntimo em um motel. Ele providenciou Champagne, ela evitou beber, ele tentava o contato, ela se mantinha distante, ele mostrava empolgação, ela resistia com frieza. Aos poucos, antigos sentimentos se movimentaram dentro dele. Sentimentos que não deveriam mais existir, mas ali estavam, bem vivos. Tornou-se agressivo. Segurou-a firme pelos cabelos e beijou-a. Sem correspondência, prendeu-a com mais força, e de um só movimento arrancou sua blusa e sutiã, empurrando-a com violência sobre a cama.
         Não ouviu Rosa implorar perdão pelas profundas cicatrizes de cortes e queimaduras de cigarro que lhe marcavam o peito e as costas. Eram marcas de um ex-noivo, disse ela.
         Ivanildo desabou, agarrou-se a Rosa como pode, e chorou por ela, e — mais ainda — por ele. Aos poucos foi se deixando cair, e sempre agarrado a ela, de joelhos, como um filho que pede perdão à mãe, só fazia repetir: — Nunca mais! Nunca mais!


Opção 2: como alguém que pede perdão quando não há mais quem perdoe
Opção 3: como um corvo preto de dor e sofrimento

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