Ivo, Ivan, Nildo, Ildo, também Vanildo. Já se chamara por todos esses nomes, e alguns outros apelidos. Nunca repetia, para evitar conexões indesejadas. Se mudara cinco vezes de casa e três de cidade, sempre fugindo de algo, sempre à procura de algo.
O fato é que
Ivanildo — assim estava na certidão de nascimento — tinha problemas, não
apenas com o nome, mas consigo mesmo. Primeiro e único filho de pais solteiros
de baixa renda, perdeu sua primeira infância ouvindo os gritos da mãe enquanto
apanhava de forma brutal e cruel, e xingada repetidamente pelas dificuldades da
vida. Nunca assistira, pois seu pai — preocupado com ele — o levava para o
banheiro com alguns brinquedos. Via apenas as marcas nos dias seguintes,
eventualmente o nariz da mãe ainda sangrando.
Amou seus pais tanto
quanto pode, tão bons que eram para ele. Numa idade de onipotência, sentia-se culpado
por todos os sofrimentos da mãe e também os a brabeza rompante do pai, sempre
tão carinhoso.
Aos seis anos
recolheu-se em seu mundo de dentro e só retornou dois anos após, com silêncio e
dor.
Na escola — um
dos mais fortes da classe — aprendeu a agredir e bater, era algo incontrolável
que explodia em seu peito para depois se transformar em paz sem culpa. Com o
tempo canalizou suas energias para as lutas marciais.
Sua primeira
namorada, conheceu sua mão pesada, a irrascibilidade, o descontrole, apenas uma
vez. Ameaçado de denúncia, ele deixou o bairro, mudou-se para outro extremo da
cidade. Ao invés de Ivanildo, dizia-se Ivo, e empregou-se de segurança em uma
academia de ginástica. De corpo bem delineado, cuidava com esmero da aparência,
com camisetas que valorizavam seu avantajado tórax e os braços musculosos,
barba sempre aparada, cabelos curtos com gel, e o que mais fosse necessário
para atenuar uma pontinha de crueldade que seu rosto delicado escondia. De
perfil, notava-se orelhas gastas pelo tatame. Também por isso não tirava os
óculos escuros.
Numa noite de
chuva, ao acompanhar a dona da academia até o carro, seus braços nus se
roçaram. Ele sentiu a pele macia e carente. Ela sentiu a pele viril e jovem. No
apartamento dela, a noite teve música, dança, bebida, sexo e violência. Por
medo, ele desapareceu sem buscar o último salário. Por vergonha, ela enterrou o
que se passara, e retornou ao trabalho quando as marcas no corpo se ausentaram.
Ele continuou
fugindo, perseguido por seu ciclo culpa e violência, mudando de identidade.
Fazia musculação e lutava em academias que não lhe pedissem documento.
Aos vinte e oito
anos voltou para a mãe. Reassumiu-se Ivanildo e conseguiu trabalho em uma
lanchonete. Seus cachorros quentes eram apreciados, — o cachorro do Ivo —.
Conheceu — e
viveu — tempos de paz. Matriculou-se em um treinamento de vendas. Um mínimo de
conhecimento teórico e um freio em sua eloquência logo impulsionaram boas
avaliações.
No curso conheceu
Rosa, encerrada em seu mundo interior. Educada e meiga ao falar, pouco
participava. Constrangia-se de ser observada, e, de vendas, desejava mais que
tudo comprar-se. Carregava um desvalor pesado e dolorido, que a aprisionava.
Sempre com cabelos soltos, rosto lavado, usava um discreto e pequeno par de
brincos de pérolas, harmoniosos na simplicidade.
Sentiram
afinidade, Ivanildo e Rosa, durante um exercício simulado. Ela compraria uma
carne e ele seria o vendedor. Vendo sua indecisão, não se conteve e
precipitou-se explicando que a melhor carne para o churrasco ou forno era o
vazio. E deu uma verdadeira aula sobre cada carne, quando usar uma ou outra. Ao
final perceberam que tinham fugido do exercício e acharam graça.
Nesse dia,
Ivanildo deu carona para Rosa. E se aproximaram, também da família dela. Ele
sempre expansivo e de óculos escuros, ela sempre contida, sem maquiagem.
Gostava de sua simplicidade e recato, queria que fosse a mãe de seus filhos.
Ela, de sua determinação, e também que não fumasse.
Pressionada por
ele — Rosa achava cedo — tiveram o primeiro momento íntimo em um motel. Ele
providenciou Champagne, ela evitou beber, ele tentava o contato, ela se
mantinha distante, ele mostrava empolgação, ela resistia com frieza. Aos
poucos, antigos sentimentos se movimentaram dentro dele. Sentimentos que não
deveriam mais existir, mas ali estavam, bem vivos. Tornou-se agressivo. Segurou-a
firme pelos cabelos e beijou-a. Sem correspondência, prendeu-a com mais força,
e de um só movimento arrancou sua blusa e sutiã, empurrando-a com violência sobre
a cama.
Não ouviu Rosa
implorar perdão pelas profundas cicatrizes de cortes e queimaduras de cigarro
que lhe marcavam o peito e as costas. Eram marcas de um ex-noivo, disse ela.
Ivanildo desabou, agarrou-se
a Rosa como pode, e chorou por ela, e — mais ainda — por ele. Aos poucos foi se
deixando cair, e sempre agarrado a ela, de joelhos, como um filho que pede
perdão à mãe, só fazia repetir: — Nunca mais! Nunca mais!
Opção 2: como alguém que pede perdão quando não há mais quem
perdoe
Opção 3: como um corvo preto de dor e sofrimento
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