Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







terça-feira, 5 de abril de 2016

NEM ANJOS, NEM DEMÔNIOS



Ângelo. Assim a mãe decidiu chamar o primogênito recém-nascido. Ângelo, porque tinha cara de anjo.
Embora a mãe fosse costureira e o pai, torneiro mecânico, Ângelo teve tudo do bom e do melhor. Colégio, livros, tênis, mochila. Bicicleta, bola de futebol. Televisão e videogame. O menino cresceu forte, bom, amoroso. A mãe, com os dedos furados de tantas agulhas, o pai, de pele encardida da graxa das máquinas, acreditavam que o menino teria um futuro brilhante. Coisa de anjo mesmo.
Sophia, desde criança, estivera preparada para ter um filho anjo. E desejava com fervor. Um filho anjo. Anjo bom, anjo protetor, mensageiro entre Deus e os homens, que traz bênçãos e leva preces. Anjo que se mantivesse anjo até o fim.
Religiosa, estudou muito sobre os anjos, arcanjos, querubins, serafins e outros que tais. Quando casou — de papel passado e tudo — o marido trouxe junto seus filhos. Gêmeos, com nomes angélicos, Gabriel e Miguel logo mostraram que anjos não seriam. Pois seu pai se revelou um Lúcifer. Aos seis anos, delinquiam, e o acompanhavam na bandidagem, e já trabalhavam como mensageiros — não entre Deus e os homens. Antes dos dez anos, perdeu-os todos. Numa madrugada barulhenta e iluminada, a permanente guerra de facções deixou o pai morto e levou seus anjos caídos. Não teve deles mais notícias. Permaneceu no Alemão, mas mudou de endereço.
Sophia rezou tanto quanto pode, pelos ausentes, pelo que poderia ter sido, pelo futuro, e seguiu — sozinha — costurando a vida. Pelas peças em que morava, não pagava muito, e o que ganhava costurando — desde bainhas até canutilhos e paetês — lhe permitia o necessário e mais um pouco, pois aos domingos tinha lazer. Gostava de ir ao pequeno parque infantil onde no passado distante levara os filhos do marido — como se dela fossem — e divertia-se quase tanto quanto eles. Agora, sentava-se sempre no mesmo banco protegido do sol, e lia a Bíblia.
Foi lá que conheceu Rafael. De terça a domingo, da abertura ao fechamento do parque, ele cuidava dos equipamentos, das máquinas, das engrenagens e rolamentos, para que nada falhasse no momento em que as crianças riam e as mães fotografavam. Sua jornada tinha três descansos, mas, no domingo, ele só fazia um. Na meia manhã, após lavar suas mãos e braços com sapólio, até sentir a sujeira de graxas e óleos removida, e também sua pele arranhada, tirava sua roupa de trabalho. Já sem nada de mecânico passava nas mãos um creme caseiro — receita de seu pai — a base de azeite de oliva, chá verde e óleo de coco. Quando podia acrescentava um pouco de cera de abelha. Só então ia ao seu armário buscar o sanduiche preparado em casa e uma Bíblia. Entre mordidas e salmos, descansava, sem saber, próximo de Sophia, enquanto os brinquedos giravam e as crianças gritavam.
Descobriram-se almas gêmeas — Rafael e Sophia. Em pouco tempo estavam juntos, desta vez sem papel passado, e logo encomendaram seu anjo.
Nascido em treze de dezembro, não o chamaram Daniel, mas assim como o protetor do dia, seu filho buscaria a misericórdia e o consolo em Deus, e seria justo como deve ser um anjo.
Chamaram-no Ângelo, e no batismo leram a Bíblia: “Não vos esqueçais da hospitalidade, porque por ela alguns, sem o saberem, hospedaram anjos.” E até o filho completar seu primeiro ano, todas as noites repetiam o versículo.
Ao final do primeiro grau, Ângelo já pensava na profissão. Não gostava da polícia, que — para proteger — invadia, batia e matava. Queria ser militar, estudar na escola naval, embarcar em navios de patrulha, não de guerra.
Num domingo de novembro, acordaram com o barulho de gente correndo e gente atirando, e logo atrás os militares, com fardamentos invejáveis do exército e da marinha. Orgulhoso de seu futuro, Ângelo quase abriu a porta.
Aflitos, seus pais correram, ela a fechar as janelas e ele a quase trancar a porta. Chegou tarde. Foi derrubado por dois invasores que gritavam e ameaçavam atirar com suas armas automáticas. Com os rostos disformados por meias de nylon, ainda assim pareciam tão apavorados quanto os de casa. Apontando ora para um ora para outro, fixaram-se por instantes em Sophia. Depois, deixando escapar uma ponta de surpresa, entreolharam-se, e, assim como tinham entrado, desapareceram. Na sala, ouviam-se tiros, gritos e correrias, que o Brasil — sentado no sofá da sala — assistia na televisão.
Em estado de choque, Sophia chorava compulsivamente, escorrendo pela parede até encolher-se no chão. Sentaram-se os três, abraçados, e quando se ouviu apenas o silêncio da rua, Ângelo perguntou duas vezes: — Mãe, quem eram esses dois?
Despertada de seu mundo de dentro, Sophia apenas disse: — Talvez anjos, meu filho! Pelo menos hoje, eram anjos!             



Oficina de Subtexto / Cíntia Moscovich / exercicio a partir do 3º parágrafo

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