Ângelo. Assim
a mãe decidiu chamar o primogênito recém-nascido. Ângelo, porque tinha cara de
anjo.
Embora a mãe
fosse costureira e o pai, torneiro mecânico, Ângelo teve tudo do bom e do
melhor. Colégio, livros, tênis, mochila. Bicicleta, bola de futebol. Televisão
e videogame. O menino cresceu forte, bom, amoroso. A mãe, com os dedos furados
de tantas agulhas, o pai, de pele encardida da graxa das máquinas, acreditavam
que o menino teria um futuro brilhante. Coisa de anjo mesmo.
Sophia, desde
criança, estivera preparada para ter um filho anjo. E desejava com fervor. Um
filho anjo. Anjo bom, anjo protetor, mensageiro entre Deus e os homens, que
traz bênçãos e leva preces. Anjo que se mantivesse anjo até o fim.
Religiosa,
estudou muito sobre os anjos, arcanjos, querubins, serafins e outros que tais.
Quando casou — de papel passado e tudo — o marido trouxe junto seus filhos.
Gêmeos, com nomes angélicos, Gabriel e Miguel logo mostraram que anjos não
seriam. Pois seu pai se revelou um Lúcifer. Aos seis anos, delinquiam, e o acompanhavam
na bandidagem, e já trabalhavam como mensageiros — não entre Deus e os homens.
Antes dos dez anos, perdeu-os todos. Numa madrugada barulhenta e iluminada, a
permanente guerra de facções deixou o pai morto e levou seus anjos caídos. Não
teve deles mais notícias. Permaneceu no Alemão, mas mudou de endereço.
Sophia rezou
tanto quanto pode, pelos ausentes, pelo que poderia ter sido, pelo futuro, e
seguiu — sozinha — costurando a vida. Pelas peças em que morava, não pagava
muito, e o que ganhava costurando — desde bainhas até canutilhos e paetês — lhe
permitia o necessário e mais um pouco, pois aos domingos tinha lazer. Gostava
de ir ao pequeno parque infantil onde no passado distante levara os filhos do
marido — como se dela fossem — e divertia-se quase tanto quanto eles. Agora, sentava-se
sempre no mesmo banco protegido do sol, e lia a Bíblia.
Foi lá que
conheceu Rafael. De terça a domingo, da abertura ao fechamento do parque, ele cuidava
dos equipamentos, das máquinas, das engrenagens e rolamentos, para que nada
falhasse no momento em que as crianças riam e as mães fotografavam. Sua jornada
tinha três descansos, mas, no domingo, ele só fazia um. Na meia manhã, após
lavar suas mãos e braços com sapólio, até sentir a sujeira de graxas e óleos
removida, e também sua pele arranhada, tirava sua roupa de trabalho. Já sem
nada de mecânico passava nas mãos um creme caseiro — receita de seu pai — a
base de azeite de oliva, chá verde e óleo de coco. Quando podia acrescentava um
pouco de cera de abelha. Só então ia ao seu armário buscar o sanduiche
preparado em casa e uma Bíblia. Entre mordidas e salmos, descansava, sem saber,
próximo de Sophia, enquanto os brinquedos giravam e as crianças gritavam.
Descobriram-se almas gêmeas — Rafael e Sophia. Em pouco tempo estavam juntos,
desta vez sem papel passado, e logo encomendaram seu anjo.
Nascido em
treze de dezembro, não o chamaram Daniel, mas assim como o protetor do dia, seu
filho buscaria a misericórdia e o consolo em Deus,
e seria justo como deve ser um anjo.
Chamaram-no Ângelo, e no batismo leram a Bíblia: “Não vos esqueçais da hospitalidade, porque por ela alguns, sem o
saberem, hospedaram anjos.” E até o filho completar seu primeiro ano, todas
as noites repetiam o versículo.
Ao final do primeiro grau, Ângelo já pensava na profissão. Não gostava
da polícia, que — para proteger — invadia, batia e matava. Queria ser militar, estudar na escola naval, embarcar
em navios de patrulha, não de guerra.
Num domingo de novembro, acordaram com o barulho de gente correndo e
gente atirando, e logo atrás os militares, com fardamentos invejáveis do
exército e da marinha. Orgulhoso de seu futuro, Ângelo quase abriu a porta.
Aflitos, seus pais correram, ela a fechar as janelas e ele a quase
trancar a porta. Chegou tarde. Foi derrubado por dois invasores que gritavam e
ameaçavam atirar com suas armas automáticas. Com os rostos disformados por
meias de nylon, ainda assim pareciam tão apavorados quanto os de casa.
Apontando ora para um ora para outro, fixaram-se por instantes em Sophia.
Depois, deixando escapar uma ponta de surpresa, entreolharam-se, e, assim como
tinham entrado, desapareceram. Na sala, ouviam-se tiros, gritos e correrias,
que o Brasil — sentado no sofá da sala — assistia na televisão.
Em estado de choque, Sophia chorava compulsivamente, escorrendo pela
parede até encolher-se no chão. Sentaram-se os três, abraçados, e quando se
ouviu apenas o silêncio da rua, Ângelo perguntou duas vezes: — Mãe, quem eram
esses dois?
Despertada de seu mundo de dentro, Sophia apenas disse: — Talvez anjos,
meu filho! Pelo menos hoje, eram anjos!
Oficina de
Subtexto / Cíntia Moscovich / exercicio a partir do 3º parágrafo
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