Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







segunda-feira, 27 de julho de 2015

REMORSO



— Não atira! gritou o Negro, desesperado por não poder fugir da mira daquela espingarda. Se chamava Edgar, Edgard ou Edegar. Afinal, talvez nem ele soubesse dessas possibilidades. Provavelmente tinha sobrenome, mas, sabe-se lá qual seria. Todos o chamavam por Negro. Às vezes, negro Edgar.
Naquela manhã, que quase lhe acertei um tiro, tivemos mais sorte que o pobre João de Barro que eu matei à tarde, praticamente à queima roupa, caindo imóvel na minha frente.

Passaram-se cinquenta anos, mas daquele um dia de tantos, de uma de tantas férias na campanha, mantenho algumas imagens e lembranças intactas. Algumas, como esta, conservadas pelo remorso.
Devíamos ter não muito mais que treze anos de idade, o Negro e eu. Ele vivia lá na fazenda, era criado por todos, assim como a irmã menor, ambos deixados pela mãe que tiveram um dia.
Foi um verão em que descobri e me ocupei com uma velha espingarda e seus cartuchos. Aprendi a recarregá-los com chumbo e pólvora, para atirar não sei em quê, ou em quem. Talvez nas caturritas que eram uma praga para a horta e lavouras, e viviam nos matos de eucaliptos, próximos da casa principal. Com certeza não era para caçar perdizes ou lebres, pois a caçada nunca me atraiu. Nem as pescarias, que também é um tipo de caçada. A questão é que eu carregava os cartuchos vazios para usá-los, atirando em alguma coisa.
Esse meu período de atirador foi meteórico. Não durou mais do que um dia, pois um quase acidente esvaziou meu interesse pelas armas. Desde então digo não às armas.
A coisa foi assim, de acordo com os fatos e cronologia que eu lembro.
O tal do Negro teria quebrado, ou no mínimo trincado, o osso da canela, ao cair do cavalo, quando este se assustou e com um movimento brusco mudou de direção. Por isso passava uma temporada sobre uma cama com a perna imóvel para o ar, sem ter como se movimentar ou fugir. E eu, especialista em cartuchos recarregados, resolvi dar um susto no Negro, um autêntico cagaço, apontando a espingarda em sua direção e dizendo que ia matá-lo. Por alguns segundos a cena pareceu cômica, mas o olhar desesperado do Negro me entristeceu por uma vida.  Atirei quase à queima roupa. Digo “quase”, pois, de propósito, colocara apenas pólvora no cartucho, sem chumbinhos. Daquele cartucho vazio me restou um grande alívio pelo apenas susto, e um remorso imenso pela maldade praticada.
No mesmo dia, matei covardemente o João de Barro, talvez alguma caturrita, e, encerrei minha breve carreira dando um último tiro, com um cartucho supostamente vazio, que após o estampido e as faíscas, deixou um buraco no chão. Guardei a espingarda, fiz não sei o quê com os cartuchos, e, após a descarga de adrenalina, agradeci ao desconhecido por ter aprendido tanto, sem desgraçar a vida.
Lembrei disso tudo quando, ontem, alguém me comentou que o negro Edegar havia sido encontrado morto no mês passado, após uma semana de chuva intensa. Estava no meio do campo, sem cavalo, sem vestígios. No mesmo campo que percorreu durante toda a vida na lida com o gado, com a lavoura, com os aramados e com o mais necessário.
Foi enterrado em um cemitério de campanha, na terra, sob uma cruz de galhos de eucaliptos, onde alguém gravou apenas “negro Edegar” com um suposto dia da morte. Em seus mínimos pertences não foi encontrado documento algum que esclarecesse seu nome e sua idade. Não sei ainda o que sinto. Mas já não é apenas remorso.

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