— Não atira! gritou o Negro,
desesperado por não poder fugir da mira daquela espingarda. Se chamava Edgar,
Edgard ou Edegar. Afinal, talvez nem ele soubesse dessas possibilidades. Provavelmente
tinha sobrenome, mas, sabe-se lá qual seria. Todos o chamavam por Negro. Às
vezes, negro Edgar.
Naquela manhã, que quase lhe
acertei um tiro, tivemos mais sorte que o pobre João de Barro que eu matei à
tarde, praticamente à queima roupa, caindo imóvel na minha frente.
Passaram-se cinquenta anos, mas daquele
um dia de tantos, de uma de tantas férias na campanha, mantenho algumas imagens
e lembranças intactas. Algumas, como esta, conservadas pelo remorso.
Devíamos ter não muito mais que
treze anos de idade, o Negro e eu. Ele vivia lá na fazenda, era criado por todos,
assim como a irmã menor, ambos deixados pela mãe que tiveram um dia.
Foi um verão em que descobri e me
ocupei com uma velha espingarda e seus cartuchos. Aprendi a recarregá-los com
chumbo e pólvora, para atirar não sei em quê, ou em quem. Talvez nas caturritas
que eram uma praga para a horta e lavouras, e viviam nos matos de eucaliptos,
próximos da casa principal. Com certeza não era para caçar perdizes ou lebres,
pois a caçada nunca me atraiu. Nem as pescarias, que também é um tipo de
caçada. A questão é que eu carregava os cartuchos vazios para usá-los, atirando
em alguma coisa.
Esse meu período de atirador foi
meteórico. Não durou mais do que um dia, pois um quase acidente esvaziou meu
interesse pelas armas. Desde então digo não às armas.
A coisa foi assim, de acordo com
os fatos e cronologia que eu lembro.
O tal do Negro teria quebrado, ou
no mínimo trincado, o osso da canela, ao cair do cavalo, quando este se
assustou e com um movimento brusco mudou de direção. Por isso passava uma temporada
sobre uma cama com a perna imóvel para o ar, sem ter como se movimentar ou
fugir. E eu, especialista em cartuchos recarregados, resolvi dar um susto no Negro,
um autêntico cagaço, apontando a espingarda em sua direção e dizendo que ia
matá-lo. Por alguns segundos a cena pareceu cômica, mas o olhar desesperado do
Negro me entristeceu por uma vida. Atirei
quase à queima roupa. Digo “quase”, pois, de propósito, colocara apenas pólvora
no cartucho, sem chumbinhos. Daquele cartucho vazio me restou um grande alívio
pelo apenas susto, e um remorso imenso pela maldade praticada.
No mesmo dia, matei covardemente o
João de Barro, talvez alguma caturrita, e, encerrei minha breve carreira dando
um último tiro, com um cartucho supostamente vazio, que após o estampido e as
faíscas, deixou um buraco no chão. Guardei a espingarda, fiz não sei o quê com
os cartuchos, e, após a descarga de adrenalina, agradeci ao desconhecido por
ter aprendido tanto, sem desgraçar a vida.
Lembrei disso tudo quando, ontem,
alguém me comentou que o negro Edegar havia sido encontrado morto no mês
passado, após uma semana de chuva intensa. Estava no meio do campo, sem cavalo,
sem vestígios. No mesmo campo que percorreu durante toda a vida na lida com o gado,
com a lavoura, com os aramados e com o mais necessário.
Foi enterrado em um cemitério de
campanha, na terra, sob uma cruz de galhos de eucaliptos, onde alguém gravou
apenas “negro Edegar” com um suposto dia da morte. Em seus mínimos pertences
não foi encontrado documento algum que esclarecesse seu nome e sua idade. Não
sei ainda o que sinto. Mas já não é apenas remorso.
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