Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







sábado, 8 de agosto de 2015

UM BOM DOMINGO CHEIRA A MOLHO BOLONHESA




Os cheiros que circulavam na morada de meu pai não eram agradáveis. E seu pequeno e abafado quarto, embora ensolarado e supostamente ventilado, também já cheirava como toda aquela casa. Era o que se poderia esperar de um lar de idosos, e mesmo tendo sido totalmente renovado, paredes pintadas com vinílica, aberturas com esmalte, aquele cheirinho de tinta nova já escapulira pela janela e, pela porta, os residentes velhos cheiros já ocupavam e preenchiam cada canto do ambiente. Por sorte havia uma rotina diária que interrompia por algum tempo aqueles cheiros de fim da vida, mistura de talco com odores acres meio ardentes.
Pela manhã, após a higienização, predominava o odor azulado do cloro da água sanitária, fartamente usada, mas também perfume incolor da lavanda genérica. Eu não consigo distinguir a lavanda, alfazema ou rosas, tudo se parece, e chamo a todos de lavanda. O efeito é o mesmo, pois são aromas igualmente agradáveis. Esse era o melhor momento para uma visita a meu pai.
Em dias ensolarados de inverno eu sentava numa poltroninha sob os raios tristes que entravam pela janela límpida e colocava invariavelmente um CD de árias orquestradas por Mantovani. Tinha comigo sempre a leitura de um livro, e de páginas em páginas, eu olhava meu pai naquela cama, imóvel, dormindo e inconsciente. Às vezes, o imaginava como uma boa gaveta vazia de uma velha escrivaninha, que já fora aposentada, contendo apenas uma foto gasta e desfocada, e seu verso escrito com tinta invisível – porém mágica –, que permitia a cada visitante fazer uma leitura pessoal e única das memórias ali registradas. Era um pensamento recorrente, esse.
Aquecido pelos raios que me tocavam, deixava chegar outras lembranças trazidas pela música, e imaginava se algum daqueles acordes delicados e doces seria percebido por ele. Especialmente durante Casta Diva, eu o relembrava assoviando e marcando o ritmo com o movimento da cabeça, com seus todos sentidos concentrados na interpretação de Maria Callas, sem deixar passar nenhuma sílaba ou nota. Tinha uma farta cabeleira preta nessa época, mas mesmo quando ficaram brancos ainda lhe davam um vivo charme. Aprendi a gostar de árias na cumplicidade de sua companhia, enquanto esperávamos o almoço dominical e ele tomava uma dose de uísque com um pouco de água e duas ou três pedras de gelo que não lembro mais. Havia também azeitonas verdes, colocadas num pequena xícara tipo colorex, apoiadas sobre o braço de madeira escura de sua aconchegante poltrona. Embora pouco ou nada falássemos, nem quando ele me oferecia alguma azeitona com o olhar, naqueles momentos me sentia muito próximo dele. Nunca comentei com alguém o que sentia, talvez nem eu mesmo soubesse. Mas era um sentimento bom, e, com o tempo lamentei que meus irmãos não tivessem também compartilhado daqueles momentos.
Lembro de um domingo festivo, ‑ dia dos pais? ‑, em que chovera toda a noite e continuou com mais intensidade e frio também, pela manhã. Talvez estivéssemos ainda de pijamas, mas a cozinha já funcionava a pleno vapor e o cheiro picado de cebola, e depois frito, percorria o corredor e chegava até os quartos, dando bom dia a todos. O almoço seria massa com molho vermelho de tomate e carne moída, que minha mãe preparava desde as oito da manhã, com muito ânimo e esmero, e sem aceitar ajudas, exceto para moer a carne. Nesse dia todo nosso agradável café da manhã tinha cheiro de cebola e alho. Não apenas o vapor do leite quente, mas o pão, a geleia, tudo. Não reclamávamos, pois sabíamos que na meia manhã começaríamos a sentir o cheirinho gostoso daquele molho, que ferveria por mais de uma hora até se tornar o prêmio que nos seria servido no almoço. Essas manhãs, mesmo com tanta chuva, eram as melhores do ano, e aquela só foi interrompida pelos resmungos de minha mãe porque faltara queijo para ralar, pois ela nunca admitiu comer qualquer massa que fosse, sem uma porção generosa de parmesão ralado. Então meu pai pegou um guarda-chuva grande que ficava de pé atrás da porta da rua e se prontificou a comprar o queijo no armazém a duas quadras e meia. Eu disse – me leva? –, e, surpreso fiquei, e também encantado, quando seus braços estendidos me convidaram, apesar daquela chuva incessante e fria, que caía de um céu cinza e rabugento, que nos acompanhou na ida e na volta, sem se preocupar com as poças já cheias d’água que saltava ao nosso pisar entrando pelos calçados e empapando meias e calças, grudando em nossas pernas como ventosas molhadas de moluscos gelados. Com o queijo na mão abrandamos a censura de minha mãe, que se satisfez em me dar um banho quente, a ponto de causar calafrios até que o queixo parasse de tiritar, e, ao final, com prazer, vestia novas roupas quentes. Depois disso a manhã continuava, e já era hora de ligar o toca discos, preparar o uísque e as azeitonas e acompanhar aquela música cada vez mais agradável.
Tudo isso eu lembrava também porque era domingo, embora não pudesse mais ser cúmplice e companheiro do pouco que restara de meu pai inerte nessa cama hospitalar branca de frio e ferro sem vida.
Assim eram minhas visitas domingueiras no asilo geriátrico, e, ao me dar conta que se aproximava a hora do almoço, de forma quase abrupta me levantava e ia embora a passos surdos para não ser notado. Antes que aqueles maus cheiros gradualmente retornassem para o quarto de meu pai.


4 comentários:

  1. Catzo, só agora descobri teu blog. Vou frequentar assiduamente, Abração.

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    1. Amigo Flávio, não sou postador contumaz. E normalmente informo pelo Face. Após seis anos, o blog já tem quatro seguidores, sendo uma minha filha, dois desconhecidos e um outro amigo. Mas persistirei!!

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  2. Fiquei emocionada e me senti dentro do quarto contigo, passando pelas memórias e cheiros da tua infância.

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