Se eu não morresse nunca ! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas. (Cesário Verde 1855-1887)







terça-feira, 25 de agosto de 2015

DIÁRIO DE BORDO: "E SE EU FOSSE UM CÁLICE DE VINHO??" (exercício de escrita criativa)


Ao final do primeiro dia de curso, nesta maravilhosa Lisboa, deveríamos produzir um texto sob a ótica de um narrador não humano. Pensei numa narrativa de um cachorro, pois imagino que os cachorros veem e escutam cada coisa que seus donos fazem! Mas preferi me transformar num corpo de vidro. Melhor ainda: em um cálice de vinho tino.


MEU PRIMEIRO BEIJO

Nasci assim, transparente e frágil. Como a água límpida que deveria nascer de uma fonte das rochas.
Naquele dia todos nasceram iguais a mim. Altos, bojudos, haste longa, pés redondos. E quentes. Muito quentes ao nascer.
Ficamos várias horas repousando num local que dizia “Setor de Resfriamento”, até atingir nossa temperatura natural. Então, após passar por uma ducha, e ser apalpado em uma revisão minuciosa,
 onde se ouvia, volta e meia, que “este” tinha uma bolha, ou um ponto escuro, ou uma deformidade qualquer, com alguns semelhantes fui para uma caixa de papelão. Por um breve tempo, só se via o teto. Relativamente alto, branco, necessitando reparos, com duas luminárias fluorescentes. Depois, a caixa foi fechada. Embora escuro, era um ambiente tranquilo. Vibrei muito durante a primeira viagem. Em sequência teve mais outra.
Então ficamos uma longa noite na espera de um novo movimento, uma voz ou barulho qualquer.
Quando repentinamente clareou, uma mão com luvas brancas me retirou da caixa, com cuidado, e fui colocado numa prateleira. Conheci ali muitos corpos. De vários tipos, mas todos de vidro. Era uma quantidade imensa que ocupava várias prateleiras. Fiquei sabendo que meu nome – e de outros iguais que estavam juntos - era “taça para vinho tinto”.
As pessoas se aproximavam, olhavam atentamente, tomavam-nos nas mãos e avaliavam não-sei-o-quê. Pois é certo que não tínhamos pontos escuros ou deformidades. Às vezes levavam alguns de nós. Fui acariciado com muita frequência, pois estava na frente do pelotão. Lembro da sensação ao ser tocado por mãos macias, mas também por calejadas, algumas cálidas, e outras tantas frias, mas sempre cuidadosas. Havia ocasiões em que me envolviam com as duas mãos, o que provocava uma sensação de prazer e conforto. De acolhimento. Uma noite, talvez por inexperiência, fiquei profundamente decepcionado comigo, pois alguém, após minuciosa análise, disse que eu era muito fino, que poderia facilmente quebrar. Durou pouco minha tristeza, pois logo após fui examinado por um casal que, repetindo que eu era bem fino, acharam ótimo para uma taça de vinho. E conversaram em me colocar na lista de casamento. Essa parte eu não compreendi naquele momento, pois nunca escutara algo sobre tal lista. Mas, por alguma intuição cristalina, fiquei contente, e me senti especial, um afortunado.
Algumas pessoas me chamavam de cálice, talvez um apelido, como se já me conhecessem de outros tempos. No início não entendia. Na primeira vez eu ouvi um senhor dizer “cale-se”, mas, nem sua companheira nem ninguém se calou. Então meus vizinhos explicaram que era cálice. E os cálices seriam nós.
Éramos doze quando deixamos aquela prateleira. Como nós, era de vidro, porém muito espesso. Nessa ocasião, ao sair, tive uma visão geral daquele mundo com tantos corpos de vidro. E então, novamente fomos colocados dentro de uma caixa escura de papelão, diferente da anterior, compartimentada, onde cabiam doze de nós.
Em pouco tempo, embora chacoalhasse bastante durante a breve viagem, chegamos à um novo destino. Seria minha casa definitiva, junto com tantos outros que lá já estavam. Pequenos, altos, grandes, baixos, todos corpos de vidro. Era mais agradável, mas menos agitado, do que a prateleira de onde vim.
A vida naquele lugar era tranquila, conversávamos entre nós que recém chegamos, e depois com os vizinhos, lindos copos altos que nos olhavam interessados. Dali, daquele armário todo envidraçado, com espelho ao fundo, víamos o movimento da casa, da mesa, das pessoas, e de um cachorro grande, que volta e meia passava correndo, fugindo de alguém que gritava “já pra fora!”. Ficamos na prateleira superior, e, através de sua transparência eu via os copos que estavam abaixo. De diferentes tamanhos, eram quatro tipos, doze peças de cada. Mais abaixo, a visão já não era tão clara, mas se percebia que havia garrafas. Diferentes licores, uísque, vodca, rum. Creio que também de cachaça.
Meu companheiro da frente saía muito. Quase sempre passava a noite fora e voltava na manhã seguinte. Não dizia nada. Mas, às vezes, eu notava que ele cheirava à bebida. Talvez vinho. Nunca perguntei sobre isso.
Um dia, o movimento começou cedo, e desse não escapei. Fomos para a torneira. Uma chuvarada, mais para quente do que para fria, esponja, detergente, esfregação, e saímos limpinhos, sem pó, sem marcas. Como quando viemos ao mundo. Secamos ao ar livre, sem necessidade de toalhas.
À tardinha, fomos levados para uma mesa. Lindíssima. Revestida por um manto vermelho, com bordados brancos, enfeites de Natal, louça nova, pratos com nozes, damascos e figos secos turcos, frutas cristalizadas. E também velas, vermelhas com fitas douradas, que foram acesas minutos antes dos convidados chegarem.
Ficamos dispostos em doze lugares, e junto com cada um de nós – taças para vinho tinto – havia mais uma taça, esta menor, e um copo. Além de pratos e talheres, é claro. Mas esses ficavam deitados na mesa, enquanto que nós, e também as garrafas, ficávamos de pé.
De onde eu estava não tinha a visão da porta, pois havia uma garrafa escura de vinho bem na minha frente. Mas, por um espelho da parede oposta, observava o reflexo das pessoas que chegavam. Traziam presentes e eram lindas, bem vestidas, sorridentes e amáveis. Em especial, aquela de vermelho. Desejei ser escolhido por ela para o que acontecesse dali em diante.
Depois de muitas conversas, cada vez mais cruzadas e barulhentas, alguém sugeriu passar para a mesa de jantar.
Chegara finalmente a minha vez de participar. Para isso fui feito.
Todos nós, taças e copos, pratos e talheres, e até guardanapos, assumimos uma solene posição de sentido.
As primeiras pessoas chegaram e escolheram lugares opostos ao meu. Mais outras, e ao final, ela. A de vestido vermelho, e, agora eu via, também de lábios vermelhos.
Encostou a mão em uma cadeira, ameaçou escolher outra, pendia para uma terceira, e, ao final, caminhou na minha direção, tudo isso sem me olhar diretamente. Falava com alguém ao seu lado, pausadamente, mas eu não entendia nada. Estava fixado em sua boca intensa e encarnada.
Só acordei daquela gostosa languidez, quase uma letargia, minutos após, quando já sentava à minha frente. Ouvi sua voz dizer “Água com gás, por favor” e “Sim, vinho tinto”.
Então, imediatamente senti um frio espesso e determinado, escorrendo por minhas costas. Friagem esta que foi descendo até a barriga. Imediatamente, uma sensação de calor tomou conta de mim, já com o vinho descansando em meu corpo.
A partir daí, neste lado da mesa houve um breve momento de quietude, com todos já acomodados, e pouco aconteceu. Já, na outra ponta, começava uma algazarra pois discutia-se sobre os segredos para a longevidade. Ela – minha dama de vermelho - tentou interferir duas vezes, mas nada disse com os lábios, apenas com os olhos e com uma leve inclinação de seu corpo para frente.
Então, uma voz ao nosso lado falou da importância da prevenção, além de ter hábitos saudáveis, incluindo atividades prazerosas, mais postura curiosa e positiva, e outros que tais. Por isso não abria mão de uma taça de vinho tinto diariamente.
Minha morena, finalmente, entrou na conversa, apoiando e acrescentando algumas outras pertinentes atividades que favorecem a longevidade. Eu estava embriagado por sua simpatia e doçura ao falar. Olhando para o nada, nem me dei conta que ela se inclinou em minha direção, e quando senti já estava acalentado por suas mãos macias e delicadas que me levaram à boca. E, então, fechei os olhos e beijei-a por longo tempo.
Agora sim, ela, com os lábios umedecidos pelo vinho, e eu marcado pelo batom, me olhou profundamente, examinando-me com aparente interesse, enquanto me colocava novamente à mesa. E então passou seus finos dedos sobre minha borda circular, na carinhosa e vã tentativa de remover a marca de batom que seus lábios deixaram nos meus. Ou desejava apenas sentir meus contornos?
Eu pensava que, como taça de vinho tinto, nada mais poderia desejar dessa efêmera e frágil vida em um corpo de vidro.
Pois não é que o destino me ouvia? E por sua vontade ocorreu que uma indesejada e desajeitada mão, que não vi de onde veio nem de quem era, batesse e desequilibrasse uma garrafa que por cima de mim se inclinou, e, na ânsia de evitar o estrago, outras mãos tentaram acudir atabalhoadamente, sem evitar minha queda e batida na borda de um prato amigo. Ela, a de vermelho, me ergueu, pouco vinho havia sido derramado, e, percebendo que eu estava literalmente lascado, me segurou pela ultima vez, entregando-me para alguém que ia para a cozinha.
Numa última visão daquele ambiente, naquele momento de silêncio, tive a nítida sensação de que os copos de uísque vibraram ao perceberem que, vitimado pela fatalidade, eu não mais lhes faria concorrência. Apesar disso não fiquei triste, pois, uma das essências de nossa vida mineral, é que não conhecemos esse sentimento, nem outro algum. Mas curiosidade, temos. Com quem ela passaria o restante da noite não saberia. Por certo não seria com eles. Talvez com uma outra taça de vinho tinto.
Mas isso já não importava. O primeiro beijo fora meu, e a marca daqueles lábios vermelhos eu levaria como uma tatuagem irremovível até a moagem, fundição e transformação do que fui em um outro corpo. Sim, porque nós, corpos de vidro sempre temos a certeza de uma nova vida após a reciclagem.
Infelizmente, quando isso ocorrer, já não lembrarei mais desse nosso beijo.


Nota: este conto foi um exercício de escrita em que o narrador é um objeto.

Um comentário:

  1. Parabéns, Leozinho! Belo texto para ser lido em uma noite atirada no sofá sozinha... até fiquei com vontade de interagir com um co(r)po de vinho tinto! Às vezes aproveitamos pouco as possibilidades de interação com essas coisas que nós denominamos de objetos. Como somos presunçosos!

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