Ao final do 2º dia de aula,a professora nos propôs escrever um texto que contivesse "quando acordei o dinossauro ainda estava lá". É mole? Num final de tarde, meio exauridos meio ansiosos para tomar umas.
É maravilhoso estar aqui e participar desse programa. Amanhã encerra-se esta jornada e a atividade de conclusão já foi apresentada. Tenho que pensar!
Mas antes, apresento o dinossauro, e sugiro a leitura apenas para um momento de tranquilidade. Se ler exigirá concentração, imaginem escrever!
Quando acordei, o dinossauro ainda estava
lá.
Nunca tive atração por
dinossauros. Nem os percebia como animais simpáticos. E se aparecesse algum na
minha frente, não os levaria por compadre. Não que estivesse a ponto de odiá-los, pois,
sem conhecê-los minimamente, me sentia incapaz desse mau sentimento. Falando
francamente, a coisa se resumia na falta de interesse mesmo, pois esses dinossauros
não tiveram nenhum papel em meu mundo real ou imaginário. E, quando meu filho
dizia, transparecendo uma pontinha de mágoa, por minha insensibilidade, que
“papai não gosta dos dinos”, eu tentava em vão explicar que não era de fato
assim. Afirmava, de uma forma bem neutra, que não era o caso de gostar ou não
gostar. Mas, sim, que eles não existiam, o que ajudava em nada minha situação,
pois aguçava sua tristeza por eu não participar de sua fantasia. E, então, eu atenuava,
contando a ele que na minha infância não se falava nesses animais. Que não se
tinha contato com dinossauros, tiranossauros, braquiossauros e outros tantos
sauros que passaram a ser tão conhecidos de alguns anos para cá. E, talvez para
implicar, eu dizia broncossauros, ao que ele me corrigia imediatamente “brontossauros,
papai”. Marta, minha mulher, não deixava passar a oportunidade e lhe dizia baixinho,
de um jeito que eu ouvisse, que ela conhecia um broncossauro. Embora eu saísse
um pouco chamuscado daquela conversa, me alegrava a cumplicidade e a alegria
deles, e o assunto ficava superado.
De fato, quando
criança, eu brincava com soldadinhos, índios, mocinhos, com seus cavalos e
fortes, colecionava figurinhas, primeiro da branca de neve, bela adormecida, e
depois de copas do mundo. Mas nada de dinossauros, ou quaisquer outros
imaginados répteis, que após incertos milhões de anos voltaram apenas para azucrinar
minha paciência de pai.
Mas a questão é que voltaram e, pouco a pouco, foram ocupando lugar no
quarto do Pedro e, depois de tomarem conta de toda uma prateleira,
desceram para outra, e mais outra, até ocuparem toda a estante de brinquedos. E
como se isso não bastasse, esses animais começaram a se esparramar em
nossa sala de estar. Estavam em livros infantis, para ler ou colorir, e
também em figurinhas de colar, e, depois, eram bichossaurinhos plásticos e de
borracha, de tudo que é tamanho e cor. E, como um pesadelo que não acaba, em
pouco tempo vieram os filmes sobre dinossauros.
Não tínhamos ainda DVD player, era tempo de videocassete. Um dia, mais
precisamente em uma tarde de sexta-feira, Marta chegou em casa com
“Dinossauro”, filme da Disney, dublado por Malu Mader e outros que não lembro
mais. Eu recordo muito bem desse fato porque passava na TV a mini série “Anos
dourados”, com essa mesma artista, e eu dizia que ela saía correndo dessa séria para fazer a voz
da dinossaura do filme.
Nessa primeira vez que o filme esteve lá em casa, foi assistido mais
de sete vezes em um fim
de semana. E era filme de hora e meia, o que resulta em dez horas e meia de ação,
além das paradas para aprontar as pipocas, beber água e ir ao banheiro. Naquele
sábado abri mão até de ver o futebol na TV. Mas não fiquei em casa. Fui para um
bar, assistir o jogo com os amigos.
Depois disso,
incontáveis vezes o bicho voltou. Pedro via sozinho, com os primos, coleguinhas
de escola, com quem estivesse à mão. E aqueles animais começaram a ser reproduzidos
em seus cadernos de desenho, também em outros cadernos que não eram de desenho.
Mas, o mais marcante, é que invadiram e se instalaram principalmente entre a
imaginação e preocupações de Pedro. “Será que os dinos gostam da comida da
mamãe?”, “O dinossauro quer pipoca, mamãe”, “Papai, tinha dinossauro no teu
tempo?”, “O dinossauro ainda não quer deitar”, e assim por diante.
Passado alguns meses,
Pedro voltou da escola contando que havia um filme chamado Parque dos
Dinossauros, com dinossauros de verdade, pois aqueles que conhecia até então
não eram de faz-de-conta. Maldito Jurassik Park e seus inventores. Eu já havia
visto no cinema, quando foi lançado no final dos anos 90, e prometi nunca mais
assistir um filme sobre animais pré-históricos. Mas o destino preferiu brincar
na turma de meu filho.
A partir desse filme,
os dinossauros e seus agregados deixaram de ser animais bonzinhos. Agora eram
ferozes, travavam lutas infindáveis entre si, em que o derrotado parecia ser sempre
eu. Às vezes eu lia quieto sob o abajur, e, de repente, um desses animais me
atacava no pescoço. E Pedro ria ao dizer “olha o dinossssauro no cangote do
papai !”
Marta me aconselhava a
gostar, ou, no mínimo, dizer que gostava de dinossauros, senão eles viriam me
assustar à noite, além do que eu seria uma presa fácil para a “maldição dos
dinossauros”. Eles se entreolhavam e riam como só os bobos riem. Mas eu sabia
de qual bobo eles estavam caçoando.
A maldição dos
dinossauros, conforme Marta, seria que eles nunca me deixariam em paz. E de fato, volta e
meia, primeiro ela, depois também o Pedro, não cansavam de dizer “é a maldição
dos dinossaaaauros!”. Se aplicava a tudo a tal maldição. A chave que eu não encontrava,
o copo que quebrava, o gás do chuveiro que faltava, a lâmpada que queimava,
tudo, absolutamente tudo, tinha a ver com a cruel “maldição dos
dinossaaaauros”. Até as derrotas de meu time eram devidas a essa bizarrice.
E, num dia, aconteceu
de fato um episódio inusitado, como uma praga rogada, que ainda hoje tenho
dúvidas se não foi mesmo coisa dos dinossauros.
O meu ninho era grande! |
Durante um feriado
longo de Páscoa, viajamos por quatro dias. Ufa, livre dos dinossauros, apenas
coelhinhos da Páscoa. Tudo correu maravilhosamente bem, e eu também ganhei um
ninho de Páscoa bem grande, com bombons de cereja (meus preferidos) chocolate
meio amargo, garrafinhas de chocolate com licor, balas de goma (que eu
adorava), e outras guloseimas. Mas, e infelizmente havia um “mas”, escondido na
cesta fora colocado – provavelmente pela coelha grande - um dinossauro de
chocolate. Não tinha marca, nem sinal algum de fabricação industrial. Parecia
ter sido feito em
casa. Endereçado para mim. Tive vontade de devorá-lo assim
que encontrei meu ninho, que estava escondida no forno do fogão. Eu fui o
último a encontrar, pois o Pedro já havia encontrado a cesta dele. Mas não
estava tão escondida quanto a minha, pois eu esperava receber uma cesta de
Páscoa maior que o compartimento do forno de um fogão a gás. A procura do ninho
da Marta não conta, pois ela própria havia escondido a sua cesta, e, a par
disso, tinha excelente memória. Então, não teve dificuldades em encontrá-la.
Eu lembro que, ao me
preparar para devorar aquele dinolate (ou chocossauro, sei lá) os dois gritaram
em uníssono. “Nãããão! Cuidado com a maldição dos dinossssauros!” E se puseram a
rir como se aquilo fosse a coisa mais gozada do mundo. Talvez, para eles, fosse.
Então deixei de lado aquele maldito Dino e me atraquei em dois bombons de
cereja. Comi sem olhar para eles.
O restante do feriadão
foi ótimo. Andamos de bicicleta, jogamos bola, e também cartas. Eu gostava de
jogar rouba-monte, mas Pedro achava muito infantil. Canastra ele gostava, mas
eu achava que era jogo de adulto. Naquele final de semana até pinhão e pipoca
teve. Salgadas e doces. As pipocas.
No domingo à noite
voltamos para casa, cansados, mas de lazer cumprido. Tudo perfeito, exceto pela
TV, que havia sido esquecida ligada, e, para nossa surpresa, estava com uma
imagem congelada de um dinossauro comendo folhas de árvore. Não foi difícil
descobrir que o videocassete também ficara em funcionamento, e, sabe-se lá em
que momento, trancou a fita naquela imagem. Deve ter ficado os quatro dias
assim, apesar de Pedro garantir que tinha desligado tudo.
Imaginava eu que, ao
apagar a TV, aquela imagem desapareceria. “Desliga que o Dino vai embora”,
dissera meu filho, seis anos, o grande responsável por aquela imagem congelada,
de um dinossauro de perfil ocupando o centro da tela.
Devo dizer que até
esse momento, eu realmente não tinha noção, nem imaginava o que estava por vir.
Então, desliguei a TV e o que se viu agora era a mesma imagem, só que
sombreada, Na tela da TV. A projeção daquele ridículo dinossauro, e da árvore
também, era perfeita.
Marta chamou Pedro
para escovar os dentes e ir deitar. Creio que, pelo canto do olho, viu aquele
vulto de dinossauro, mas evitou comentar. Numa providência que pensei ser definitiva,
tirei o fio da tomada e ainda resmunguei “chega de dinossauros por hoje”.
Apaguei as luzes da sala e fomos todos deitar.
Mas, no dia seguinte, segunda-feira,
quando acordei, o dinossauro ainda estava lá.
Não
comentei com ninguém, deixando que, em algum momento, eles mesmos descobrissem
o bicho e tivessem suas chateações com
aquilo, sem ampliar as minhas. Então, desempenhamos nossa rotina matinal de
preparação da mesa do café. Enquanto Marta acordava Pedro, ajudando-o a vestir,
eu, na cozinha, aquecia o leite, cortava o mamão, torrava algumas fatias de
pão, e punha a mesa, com uma bandeja de geleias, margarina, queijo, etc.
Em
quarenta minutos estávamos todos prontos para nossos afazeres externos. Marta e
eu trabalhávamos, e Pedro ia à escola.
Saímos
sem ninguém mais ter notado aquele dinossauro imobilizado na tela da TV. Somente
à noite, por terem voltado para casa muito antes do que eu, trouxeram o assunto.
E, tendo deixado parte de meu aborrecimento na rua, minimizei o fato. Apenas
disse “depois dou uma olhada.”
Mas, ainda assim,
aproveitei o episódio para deixar a TV desligada por dois inteiros dias, pois dessa
maneira talvez o dinossauro fosse embora. E somente na quarta-feira a levei na
assistência técnica. Pela primeira vez em dez anos de bom funcionamento.
Expliquei o problema,
imaginando que com algum pequeno ajuste tudo se resolveria, ou talvez até o
defeito tivesse sido solucionado no transporte, pelo simples chacoalhar dentro
do carro. Mas, infelizmente, isso não aconteceu.
Segundo o técnico, o
aparecimento de “fantasmas” na imagem ocorria em muitos tubos de raios
catódicos (assim era o nome daqueles tubo de imagens anteriores às telas de cristal
líquido), e a principal causa seria o congelamento de imagem por muito tempo. Como
eu não tinha “entendido bem”, repetiu e explicou que a imagem daquelas TVs, são
produzidas por um feixe de raios (os tais raios catódicos) que batem na tela,
e, às vezes (ele repetiu esse “às vezes”), pode ocorrer que se a tela fica
exposta por muito tempo a uma mesma imagem, isso pode gastar
não-me-lembro-o-que e poderia deixar uma sombra definitiva, como que marcada a
ferro, visível tanto com o aparelho ligado como desligado. Para tirar o dinossauro
daí, só trocando o tubo, mas não valeria a pena, sairia pelo preço de uma TV
nova, e agora tem as TV’s de cristal líquido, ponderávamos ele e eu.
Foi isso que
aconteceu. Voltei com o aparelho de TV para seu lugar na sala, e, a partir daí,
a sombra do dinossauro sempre estava lá. Noite e dia, ligada ou não.
Quando eu assistia
futebol, minha mulher perguntava “o Dino já fez gol?”. Mas quando eu vibrava
com o gol, ela vinha correndo e perguntava “gol de quem”. E eu, quase automaticamente
respondia “do Dino”. Com o rabo. O Dino virou personagens de todas as novelas,
apresentador de noticiários, comentarista e cantor, mas não participou mais de
seus próprios filmes, pois Pedro já não queria ver os filmes de dinossauros.
O fato é que nos
acostumamos com aquilo, pois sabíamos que um dia aquela TV iria embora, e,
então, veríamos outros programas, quiçá sem saudades daquela sombra de dinossauro.
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